Crítica | Festival

Aniki-Bóbó

A infância como espelho moral

(Aniki-Bóbó, POR, 1942)
  • Gênero: Drama
  • Direção: Manoel de Oliveira
  • Roteiro: Manoel de Oliveira
  • Elenco: Horácio Silva, Fernanda Matos, Nascimento Fernandes, António Santos, Emília de Oliveira, Delfina Ferreira, Maria Paula, Adriano Taveira, Alves da Cunha
  • Duração: 71 minutos

Antes de ser o Manoel de Oliveira dos filmes meditativos, das frases filosóficas intermináveis e dos salões aristocráticos, ele foi o cineasta que desceu às ruas do Porto para olhar crianças. Aniki-Bóbó é isso, um filme português verdadeiramente urbano, onde o sorriso é aberto, mas a brincadeira tem culpa. Um filme que, à época, foi incompreendido, mas hoje revela a ousadia de alguém que filmava a infância para descobrir de onde vem a tragédia humana e não para idealizá-la.

Os meninos do Porto correm, brigam, mentem, desejam. Não há nada daquela pureza angelical. O que há é uma moral já contaminada por códigos adultos, como o ciúme de Carlitos, o abuso de poder de Eduardo ou até mesmo a lealdade hesitante do grupo. Oliveira antecipa, sem saber, o neorrealismo italiano antes mesmo de Rossellini ou De Sica. Mas faz isso com um traço próprio, o do realismo contaminado pelo imaginário – e tem autorização, pelo universo que escolhe filmar. As travessuras de seus meninos lembram Chaplin, mas o silêncio, Bergman. Não por influência, mas instinto.

Nos tropeços, quedas e corridas, o humor do filme é físico, mas por trás dele está uma brutalidade onde se soprepõem o medo da punição, a culpa que paralisa e a mentira que pesa mais que um crime. Oliveira dizia que esse foi seu filme mais instintivo, o único que fez “sem pensar”. E é justamente nessa falta de cálculo que ele revela o seu país. Sob o regime de Salazar, Aniki-Bóbó mostra uma sociedade que educa pelo medo e vigia pelo castigo, mesmo quando disfarça isso seja em canções infantis ou num brinquedo como o João-Bobo. É ele quem dá nome ao filme, um boneco que apanha e cai, mas volta sempre a ficar em pé.

O Porto não é apenas cenário, é personagem. As margens do Douro, as escadas, os becos são labirintos morais. A cidade engole os meninos e os devolve deformados. Entre a rua e o colégio, entre o sonho e a culpa, o filme sugere uma pergunta que atravessaria toda a obra de Oliveira: onde termina o jogo e começa o destino? Ser criança, aqui, é ser jogado no mundo sem manual.

Quanto aos adultos do filme, eles quase não aparecem, mas estão em tudo; enquanto as crianças não só brincam de ser gente grande como sofrem como gente grande. Há quem chame, equivocadamente, Aniki-Bóbó de “filme menor” dentro da filmografia monumental do diretor. É aqui que nascem os temas que ele jamais abandonaria, como o peso do olhar social, a culpa, a teatralidade da existência e, sobretudo, a impossibilidade de julgar sem se comprometer.

Rever Aniki-Bóbó hoje é reencontrar um cinema que não tem medo do ingênuo, nem do desajeitado. Um filme livre antes de qualquer teoria, oral antes de ser literário e, talvez por isso, continue vivo. Numa época em que quase tudo é autoconsciência formal, essa pequena fábula moral sobre crianças portuguesas ainda nos olha com honestidade. Como se dissesse, com simplicidade cruel, que o mundo começa assim, com medo, desejo e queda.

Um grande momento
Depois da queda

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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