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Berlinale 2020: Berlim Alexanderplatz é a grande surpresa da Mostra Competitiva

Na coletiva de imprensa (26), com a sala cheia mas longe de estar lotada, o ator e protagonista de Berlin Alexanderplatz, Welket Bungué, causou comoção com a sua análise sobre o significado do filme.

Welket, falando em português, se auto-classificou como “ator nômade” e contou como se preparou para viver Francis (depois “rebatizado” de Franz), o personagem principal do romance de autoria de Alfred Döblin, publicado em 1929, no finalzinho da República de Weimar, pouco antes da ascensão de Adolf Hitler como chanceler do Reich. O romance mostra uma rústica Berlim, os perrengues de uma cidade convulsiva e paradoxa.

“Ao longo de minha carreira eu sempre estive rodeado de pessoas nômades” e acrescentou “queremos contar uma história da viagem de descartados”. Lutando com as lágrimas, ele disse: “Nós queríamos contar uma história que fosse inspirada na viagem das personagens. Se você olhar para Berlim como um microcosmos, você verá que cada um tem um sonho de se tornar a pessoa que quer”.

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Foto: Frédéric Batier/2019 Sommerhaus/eOne Germany

Ao contar sobre sua trajetória até chegar aqui, entre elas o estudo de arte performática no Rio de Janeiro e Lisboa, Welket classificou o filme como “honesto”. Sobre sua personagem, de uma leitura contemporânea de uma Alemanha depois de 2015, com a crise dos refugiados que levou 1 milhão de pessoas ao país em busca de uma vida melhor, onde os paradoxos resistem, persistem e a confusão urbana e social, também: “O filme sublinha a necessidade que está além do chegar ao seio da sociedade, mas ensina que querer ser aceito não é demais”, o que permanece um sonho, como revela e ratifica o artigo do artista e ativista chinês Ai Weiwei ao jornal “The Guardian”, no qual ele faz um acerto de contas com a cidade na qual viveu durante 4 anos, acusando os berlinenses de serem “subservientes a hierarquias”, não gostarem de estrangeiros e ainda afirmou que os alemães têm de forma profunda arraigada em seu comportamento, o pensamento nazista.

O discurso de Franz no parque Hasenheide, no bairro de convulsão social de Neukölln, com o pleitear e instigando os seus “colegas de trabalho” do tráfico de drogas, parece grotesco frente ao artigo de Ai Weiwei, que teve sucesso em retratar de forma meticulosa, a hostilidade berlinense que acomete também as personagens Franz Biberkopf, no livro de Döblin e de Francis/Franz, vivido por Bungué. 

Cenas do final do filme jogam ladeira abaixo o discurso empoderado e que viria ser de breve duração, já que para não se afundar em Berlim é preciso levantar de tombos várias vezes.

Foto: Stephanie Kulbach/2019 Sommerhaus/eOne Germany

Fassbinder no encalço?

Durante a coletiva, realizada dia 26, eu quis saber do diretor do filme, Burhan Qurbani, se o peso da obra emblemática iniciando com o romance publicado em 1929, mas especialmente com o verdadeiro legado dos 13 episódios mais epílogo filmados por ninguém menos que o enfant terrible do cinema alemão, o workaholic Rainer W. Fassbinder, teriam sido um fardo, uma pedra no sapato durante o processo criativo da leitura contemporânea. Na época, o orçamento foi o mais cara de uma produção para a TV até a época: 113 milhões de marcos alemães a emissora WDR desembolsou para fazer o épico para a TV.

O diretor se declarou “um super fã de Fassbinder” e em entrevista ao canal Berlinale Meets, ele alegou: “Existem sim muitas similaridades entre a personagem criada por mim e o Franz Bieberkopf, personagem do livro de Döblin: “Os dois fazem parte da sociedade, mas não estão integrados (nela). Os dois vivem na cidade, mas são empurrados para a periferia. Ele estão entre nós, mas são invisíveis”, resumiu o diretor. 

As filmagens aconteceram nas cidades de Berlim, Stuttgart, Colônia e teve 2 dias em Cidade do Cabo, na África do Sul.

Foto: Wolfgang Ennenbach/2019 Sommerhaus/eOne Germany

Filsofar em alemão?

Nem tanto.

Para viver Francis/Franz, o protagonista revelou que aprendeu três meses de alemão em um curso em Lisboa. Ao chegar a Berlim, teve como suporte um coach linguístico assim como para ganhar confiança e aprender “a organizar o pensamento quando se fala alemão”, disse ele em ótima sacada. Acho que nunca antes eu estive a frente de uma pessoa que delineou de forma tão prussianamente exata, a igualmente árdua e imprescindível tarefa e adentrar o hermético e hostil universo linguista e cultural alemão. No filme, Welket convence; consegue muitas vezes se empoderar do idioma para dar autenticidade aquele que “quer muito mais do que um teto sobre a cabeça e um pão com manteiga”.

Ainda segundo Welket, o sucesso do projeto se deve “ao constante diálogo entre membros da equipe”.

Eu também quis saber como o ator se preparou para viver a personagem, na percepção da cidade de Berlim e seu ponto mais convulsivo e caótico, a praça Alexanderplatz. Ainda perguntei se ele fez passeios durante a noite por ali, em formato incógnito. Para se aclimatar com Berlim como espaço urbano, ele disse que foi dar um rolê no parque Hasenheide, um dos parques mais famosos e localizado no bairro de Neukölln, um problemático caldeirão social em Berlim: venda de drogas, gente tomando cerveja sentado na grama como também uma vida noturna de responsa nos inúmeros bares e botequins que rodeiam o parque.

Foto: 2020 eOne Germany

Gala & aplausos de pé

Na noite de quarta-feira, na estreia de gala, o cinema principal do festival estava lotado até o teto em plena tarde chuvosa e horário local de 15:30 horas. No final do filme, o elenco foi aplaudido de pé. Espontaneamente, eles foram para a frente do palco, agradecer. Euforia e eletricidade por parte de público e atores.

Por falar em atores, o ator que faz a personagem de Reinhold, o “melhor amigo” de Francis/Franz, tem um desempenho brilhante: linguagem corporal mínima e efeito gigante na tela. Uma espécie de performance intelectualmente concebida e alinhavada. Cenas que também mostram uma atuação orgânica fazem desse grande talento chamado Albrecht Schuch, fortíssimo candidato ao Urso de Prata na categoria de melhor ator.

Welket Bungué | Foto: Berlinale

Depois de atuar como protagonista numa das obras mais emblemáticas e de peso na Alemanha (livro e episódios para a TV) Welket, que esteve na Berlinale em 2017 com o filme Joaquim, do diretor cearense Marcelo Gomes, deve, desde já, galgar voos muito mais altos. Agora, para ele, só o céu é o limite. E como o amanhã se constrói a partir de hoje, o ator de nacionalidade portuguesa e nascido na Guiné-Bissau, se mudou para Berlim depois do final das gravações. 

Em entrevista ao tabloide Bild, ele revela: “O clima político lá (no Brasil) não me agradava mais. Eu queria estar cercado por um ambiente de internacionalidade, favorável para trabalhar”. Welket Bungué finaliza: “Berlim sempre foi solícita comigo” e  revela ter “problemas com a praça Alexanderplatz como espaço físico” e acrescenta: “Deveriam ser plantadas mais árvores lá”.

Twitter: @CinemaBerlin
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Fátima Lacerda

Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim e cobre o festival desde 1998. Formada em Letras no R.J e Gestão cultural na Universidade "Hanns Eisler", em Berlim é atuante nas áreas de Jornalismo além de curadora de mostras. Twitter: @FatimaRioBerlin | @CinemaBerlin
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