O legado a ser deixado por Dieter Kosslick depois de 18 anos dirigindo o festival abrange vários aspectos. A mostra “Berlinale Goes Kiez”, é um deles.
Kiez é a forma carinhosa que berlinenses definem seus bairros ou parte deles como sinal de identificação e de preservação da memória urbana. Para entender o que significa Kiez e essa característica bairrista de Berlim, é preciso entrar no túnel do tempo.
A Berlim que conhecemos hoje, metrópole com 4,2 milhões de habitantes e capital da República se originou da junção de inúmeras aldeias, vilarejos. A mais importante desta junção foi a de Antiga-Berlim (Alt-Berlin) e Coelln ambas localizadas no centro da cidade, perto de Alexanderplatz. A primeira menção de Berlim em uma certidão foi no ano de 1244. Depois da junção com Cölln, 1307. Cada vilarejo tinha sua característica e essência e isso, apesar de diferentes nuances e do passar do tempo, Berlim conseguiu manter. Para notar diferenças basta andar três estações de metrô. Diferenças em forma de consumo, posicionamento político etc.
Muito tempo passou e muita água rolou por debaixo do Rio Spree, rio que atravessa o centro da cidade. Estamos no século XXI e cidade mudou. Muito!
Veio a unificação dos dois estados alemães em 1990, chegamos ao pós-moderno e atravessamos o galopante processo de globalização. Mesmo assim, Berlim continua mantendo seus núcleos sócio-culturais através da teimosia da cultura de bairros. Decerto que esse núcleo, esse luxo de cidade bairrista, no melhor sentido da palavra, continua resistindo, mesmo com o desenvolvimento dos últimos 3 anos, sublinhado pelo aumento vertiginoso dos valor do aluguéis e, consequentemente, do processo de gentrificação que bane moradores de longa data de seus bairros para virar antro de hipsters, mauricinhas e mauricinhos, gente com grande poder aquisitivo e que acha cool morar em bairro “alternativo”.
Olhar para a alma berlinense
Apesar de não ser berlinense, Dieter Kosslick mostrou visão além da borda do prato, como prescreve um ditado popular daqui, esbanjou percepção e criou a mostra “Berlinale vai aos bairros”(Berlinale goes Kiez).
Cinemas escolhidos são visitados pela Berlinale de forma que, em cada um deles, seja exibido um filme do festival com a presença dos diretores e elenco. Isso leva para os cinemas de bairro, glamour inusitado acoplado com grande visibilidade.
No site do festival estão disponíveis pequenos vídeos com administradores e/ou donos de todos os cinemas de bairros incluídos na edição 2019. Eles falam sobre memória familiar ali naquele cinema. Muitas histórias dessas salas de cinema refletem verdadeira superação, para manter o lugar na acirrada competição contra os cinemas multiplex. Os administradores, decerto, não tem a necessidade de trabalhar de 9h às 17h num escritório para sobreviver,o que também não significa que o eles não tenham um ganha pão regular.
Na edição de 2019, sete cinemas estão na lista de escolhidos, mais a projeção na penitenciária de Tegel. Localizada no norte de Berlim ela consta, pela segunda, vez no programa.
Em 2018, em tarde gélida, eu me aventurei num procedimento altamente burocrático, incluindo longos “passeios” entre uma cerca e outra e a impossibilidade de levar, além de um bloco e caneta, para a sala improvisada de projeção. Todo o resto tinha que ser trancado num armário do lado de fora da primeira cerca. Uma aventura extra foi conseguir fechar a porta do armário de metal com o dedos congelados pelo frio e a longa permanência do lado de fora da casinha onde estavam os guardas, até que o procedimento de conferir documentos tivesse sido finalizado. Mas o que você não faz movido por uma curiosidade jornalística? E geralmente, eu nunca me arrependo. Desta vez, não foi diferente.
Fui uma das primeiras a chegar. O porta-voz, muito simpático e agradecido por cada jornalista que se aventura a viajar para o norte da cidade e topar o imenso trâmite burocrático, era só felicidade. A sala de projeção tem janelas lacradas, o teto é bem alto. A única coisa que remete a um cenário inusitado, para dizer ao mínimo, é um tapete vermelho em frente ao prédio que dá entrada para a sala de projeção e um cartaz da Berlinale. Enquanto os outros jornalistas não chegavam, o porta-voz me explicava que essa vitória significa muito, do prisma social. A ideia foi dele.
O filme exibido foi da mostra competitiva e dirigido por um dos meus diretores alemães preferidos: Lars Kraume. A sala de aula silenciosa (Das Schweigende Klassenzimmer) trata de um período na antiga Alemanha Oriental (um dos tema preferidos de Kraume) e a ousadia de uma turma do terceiro ano científico em protestar contra o sistema, mesmo que este protesto tenha sido em fazer silêncio e não interagir com o professor em solidariedade com a “Primavera de Praga” em 1968. O efeito com os donos do poder pode ser comparado com o alvoroço causado pelo O Clube dos Poetas Mortos em solos ingleses.
Um dos protagonistas é Florian Lukas, conhecido mundialmente pela sua participação em “Adeus Lenin”. Depois da projeção o diretor conversou com os presidiários. O clima era tenso no inicio. Uma situação inusitada para todas as partes. Instigante ver ímpeto dos presidiários ao participarem da Q&A. Na sequência, jornalistas tiveram a chance de conversar com os presidiários, porém somente com um bloco e caneta na mão. Uma experiência inesquecível conversar com pessoas que pegaram a pena máxima de 15 anos sem ter que ter medo delas. Numa retórica de autocensura ninguém questionou o porque dele está ali. Isso poderia ter quebrado a disponibilidade de conversar com a imprensa. Alguns superaram a vergonha pelo fato de estarem ali e até se mostram lisonjeados com o interesse da imprensa.
Quanto tempo você ainda tem que ficar aqui? Ouvi que existe formação de grupos, intrigas, como aqui fora. Quem pensava que encontraria presidiários com cara de mal, mal tratados, violentos e agressivos, se enganou. Vi ali pessoas que, aqui fora, julgará ser um CEO numa grande de empresa, esbanjando retórica sofisticada, perguntas inteligentes.
O aspecto triste dessa noite foi exatamente o desfecho dela. Os jornalistas só poderiam sair do local depois que os presos tivessem sido, um a um, levados de volta para suas selas. Para isso, chegavam guardas portados de um grande molho de chaves longas e pesadonas, que deviam pesar quilos! Já pelas 22 horas, o grupo de cinco jornalistas deixavam o local, mas não sem ter que seguir por um lombo e gélido corredor ate chegar na rua. Ao ir com colegas que se encontram no Lounge da imprensa em um arranha-céu e ter Berlim aos seus pés, aí você vê o quanto a liberdade de ir e vir é impagável e não há como não ficar um gosto amargo, mesmo que a experiência tendo sido enriquecedora para cada que presenciou o evento.
Cinema Odeon
Este cinema fica no barro de Schoeneberg e é o primeiro cinema que visitei em Berlim. Nesse meio tempo, o cinema que chamava “Sivia” porque o dono tinha uma filha com este nome, que já completou 60 anos.
Menos por motivos bairristas de morar ali perto, mas pelo simples fato de que Odeon ser o único cinema em Berlim que exibe os filmes original em inglês com legendas em alemão. Quando cheguei em Berlim ainda aprendia alemão e não estava craque ou mesmo não dominava a língua eu era frequentadora de carteirinha deste cinema. Depois o acaso quis que eu me mudasse para dois quarteirões dele.
Em seu portfólio o Odeon se mostra valente resistente num espectro de pequenas salas de cinema porque a indústria de dublagem na Alemanha é muito poderosa e abrangente. Existe também um importante setor de concepção gráfica de cartazes que são “alemanizados”. Até mesmo em cabines para imprensa, a prática de dublagem não dá colher de chá e joga farofa no ventilador do cinéfilo aficionado. Imagine assistir a Rain Man com Dustin Hoffman e Tom Cruise nos papéis principais, dublado em outro idioma, sejam ele qual for? Com a perda da voz original, é roubado do expectador 50% do desempenho dos atores e, no caso de Dustin Hoffmann neste filme, é especialmente um sacrilégio.
De 9 a 15 de Fevereiro, os cinemas de bairro, entre eles o City Kino e o Odeon (ao todo são 8 cinemas incluindo a projeção no presidiário de Tegel) receberão suas “crias” com tapete vermelho, pompa e circunstância, resultando em encontros, conversas, trocas no exercício de amante da sétima arte e identificação urbana com a cidade e mais especificamente com seu Kiez.
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