Crítica | Streaming e VoD

Boa Viagem

Intoxicados pela masculinidade

(Yolun Açik Olsun, TUR, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Mehmet Ada Öztekin
  • Roteiro: Hakan Evrensel, Mehmet Ada Öztekin
  • Elenco: Engin Akyürek, Tolga Saritas, Belfu Benian, Oyku Naz Altay, Alpay Atalan, Ebru Nil Aydin, Ergun Kuyucu, Hasan Şahintürk
  • Duração: 119 minutos

Estreia de hoje da Netflix, o filme turco do mês deles Boa Viagem é uma pegadinha, em muitas formas de ver. Poderíamos dizer que encontramos exatamente o que imaginávamos até determinado momento, onde o filme não apresenta muito além de um melodrama meio televisivo, meio meloso ao extremo, até metido a engraçadinho aqui e ali. Ou seja, durante um bom tempo de produção, que é bem grande aliás, o filme não só deixa de surpreender como também aborrece aqui e ali, pela forma bem tradicional (também conhecido como “quadrada”) com que trata seus elementos, seja o desenho dos personagens, as ações onde os mesmos se envolvem e o tom alcançado por suas três trajetórias paralelas. Mais do que isso, o filme é um cinema preguiçoso e um tanto artificial, beirando a picardia em muitos momentos, sem ter a noção do que fazer com o tanto que apresenta. 

Responsável pelo fenômeno em inúmeras plataformas (inclusive na Netflix) Milagre na Cela 7 – que o crítico em questão não tacou pedra como parte significativa dos espectadores – Mehmet Ada Öztekin, dá pra dizer sem medo de errar, cresceu assistindo as tradicionais telenovelas turcas que hoje fazem sucesso no mundo inteiro, incluindo o Brasil. Suas armas de dramaturgia aqui tendem muito mais para escorregar no que a Globo produz continuamente (e provavelmente lá também) do que no filme anterior, que era sim carregado de melado, mas funcionava bem como cinema o tempo todo, ainda que um cinema com poucas qualidades estéticas. A primeira parte desse ‘Boa Viagem’ flerta em inúmeros momentos com uma vertente que escorrega em exagero sonoro e imagético, com uma trilha aguda que irrompe em momentos cruciais. 

Também seu trabalho anterior, embora passasse longe de ter um visual com identidade, conseguia traduzir para a Turquia o sentimento que Frank Darabont imprimiu em À Espera de um Milagre, por exemplo. Aqui, há um certo cansaço imagético traduzido em chroma keys muito desagradáveis de acompanhar para filmar o que é tradicionalmente um ‘road movie’; ora, se o realizador consegue filmar a estrada e a movimentação do carro onde a história dos protagonistas se desenvolve durante várias cenas, porque o espectador é obrigado a acompanhar outras passagens tão descuidadas, vez por outra? É um desleixo que até vem sendo observado em produções americanas contemporâneas, mas aqui o todo não deixa a produção respirar para outros lados. O resultado demora a engrenar, e nem dá pra concluir que a espera é recompensada. O que vemos a partir da metade é correto, mas algumas conclusões começam a serem feitas a respeito do teor. 

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Existe uma fricção que impele Boa Viagem em uma direção claramente tóxica, onde os homens em cena, seja a dupla de protagonistas ou a imensa maioria dos personagens com o qual eles cruzam, no presente ou em seus passados, é de uma violência atroz, uns contra os outros. Nem é uma questão de serem pessoas estressadas e à beira de um ataque de nervos constantemente apenas, mas de pessoas que cometem atos desnecessários a torto e a direito, sem pensar em consequências e espalhando apenas maus sentimentos pelo caminho. Essa característica é tão forte que em determinado momento o espectador começa de verdade a acreditar que essa era a intenção real, fazer uma leitura bem próxima da realidade a respeito de como o machismo fere o próprio homem, e a todos ao seu redor – obviamente, mulheres inclusas. 

Além desse aspecto até interessante, o filme também vai se embrenhando nas casualidades de guerras pela História, mas cujo foco na Turquia tem matado ainda hoje como se nunca tivesse sido diferente. Tanto Salih quanto Karim são vítimas e algozes na vida que perpetraram fora da zona de combate, e levam essa masculinidade doentia para um front da vida real. Salih é visto como um sujeito que se quebrou nesse passado bélico, tanto física quanto emocionalmente; já Karim, é o símbolo de um tipo mais tradicional, erguendo sua leveza como uma bandeira, ainda que também se transforme aqui e ali. São homens destruídos pelos conflitos onde foram arremessados, destituídos de humanidade tanto lá quanto em seu retorno, mas que esbarram com figuras mergulhadas em amargura e tragédia mesmo sem terem ido para o ambiente de guerra. É o tanto do masculino ineficaz que não vê alternativas outras que não assumir uma derrota de si mesmos.

Ou seja, existe sim uma saída para Boa Viagem que o afasta do lugar da galhofa que o diretor quase imprime em seu desenvolvimento, que acaba indo revelar uma certa profundidade de análise mais tarde. Com direito a um plot twist bem duro, daqueles que acabamos por rememorar o que vimos até então, o título se revela até terno em seus momentos derradeiros, permitindo 10 minutos sem diálogos, apenas revelando o tanto de perdas alguém pode aguentar antes de enlouquecer. É uma guinada que o filme proporciona a si mesmo na tentativa de se tornar mais relevante do que foi apresentado, e se não salva o programa por completo, prova que seu diretor tem lenha pra queimar. É só se livrar das amarras que o cerceiam em sua própria cultura, ou assumir sua gaiatice do início ao fim. 

Um grande momento
A dança da guerra

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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