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Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas

O horror no caminho da liberdade

(Eldorado - Alles, was die Nazis hassen, ALE, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário, Drama
  • Direção: Benjamin Cantu, Matt Lambert
  • Roteiro: Banjamin Cantu, Felix Kriegsheim
  • Elenco: Eli Otto Kappo, Blanca Vay, Antonio Lallo, Nicolo Pasetti, Eren Güvercin, Livia Matthes, Luke Piplies, David Ali Rashed, Bärbel Schwarz, Felix Vogel
  • Duração: 90 minutos

Poucas vezes um documentário de estrutura mais convencional consegue ultrapassar os limites do que ele está entregando, em critérios emocionais. Em se tratando do mapeamento de um tempo, de uma cultura, de uma seara acostumada à perseguição e a morte, as chances da burocracia invadir o plano são imensas. Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas, a despeito da condição homossexual do crítico, acerta o máximo possível com as ferramentas que tinha à sua disposição. Diria até que, dentro do que se propõe a fazer, o longa que acaba de entrar na Netflix comemorando o dia e o mês do Orgulho LGBTQIAPN+ alcança lugares que não se imaginava, porque a junção entre o máximo de informação e perplexidade diante de um horror que já se sabe é muito bem conduzida. 

Dirigido em dupla afinada por Benjamin Cantu (responsável por tudo o que é material documental) e por Matt Lambert (dos raros casos onde uma pessoa é creditada pela dramaturgia de um documentário, e ela merece tal distinção), Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas convida o espectador a adentrar um universo de onírico em seus dois lados, o sonho e o pesadelo. Não é um modelo a ser seguido, porque muitas vezes coisas desse tipo já foram e continuarão sendo feitas, mas raramente se atinge o nível de foco e maturidade visto aqui. É uma concentração forte de eventos e mensagens sendo disseminadas, ao mesmo tempo em que o filme entende que o material fotográfico poderia ser acompanhado de uma historiografia visual ligada à dramaturgia. Sim, estou dando voltas para não chamar o que vemos aqui de docudrama, porque esse subgênero é tão mal realizado, que acho indigno colocar o título nesse lugar. 

Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas
Netflix

Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas tem essa inclinação porque o material pictórico e imagético de arquivo encontrado por Cantu já é de tão impressionante comunicação com o público, que entendo a decisão de mostrar dramaticamente um dos seus personagens principais – o próprio Eldorado. Era irresistível ter acesso ao que foi o ambiente, um pólo de resistência à população queer em Berlim durante duas décadas, e não tentar reproduzir aquela efervescência corporal e emocional. O resultado é tão acima do satisfatório que, figurino e direção de arte seriam facilmente contemplados com prêmios em lugares comprometidos com a qualidade. Unidos à imagem, a dramaturgia impressa no rosto dos atores, na expressão precisa que cada um deles articula em seus propósitos, é um caso aparte dentro de um gênero que facilmente resvala na mesmice. 

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Em sua vertente tradicional, o filme mostra depoimentos de muitos historiadores e artistas, sempre ligados ao movimento, sejam gays, lésbicas ou transsexuais, de suma importância para reconhecer a qualidade do que foi feito naquele lugar há quase 100 anos, porque se tornou referência histórica, e como todos essas almas estavam paralelas vivendo às margens da explosão do nazismo. Se no viés dramático, todas as histórias são igualmente pungentes, no documentário temos o relato do centenário músico alemão que se apaixonou aos 12 anos de idade por um amigo, e hoje ainda está vivo. Suas palavras para denotar esse despertar de primavera, sua inocência para descrever sentimentos que um menino acharia ambíguo, dão o tom de Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas por muitas vezes. 

Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas
Netflix

No entanto, cada curva ali é imensa em provocação e detalhamento. Como as tiradas sobre o sanguinário Ernst Röhm, sua sanha assassina e seu furor homossexual, que levaram a tal figura aos extremos dentro do regime. Sua figura, tanto no material fotográfico quanto nas imagens dramáticas que o filme conduz, movem Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas a ter um vilão encarnado mais próximo da produção e do movimento gay que a figura lendária de Hitler, exatamente porque esse ser frequentava os mesmos lugares que nós frequentaríamos. Isso o torna emblemático para o filme e para figuras como o tenista Gottfried von Cramm ou o casal trans Charlotte Charlaque e Toni Ebel, no que sua figura representa o pior dentro da comunidade. 

Um dos casos onde conseguiu-se englobar exuberância e representação histórica, Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas é daqueles momentos obrigatórios dentro da Netflix, um filme que me fez pensar como as janelas de gênero cinematográfico parecem cada vez mais dispensáveis. Um caso raro de confluência do melhor de muitos mundo em um único produto, o trabalho de Cantu e Lambert impressionam pela busca da excelência sempre, de imagens, de captura de movimentos, do lugar mais próximo ao um acerto coletivo quanto poderia estar uma produção que abraça o hibridismo sem medo. E essa sim é uma característica dos que, historicamente, vieram munidos de coragem ininterrupta. 

Um grande momento

Walter fala sobre o banho com Lumpi, e seus olhos brilham 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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1 Comentário
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Felix Marinho
Felix Marinho
02/07/2023 23:09

Sim, concordo com tudo o que você escreveu Francisco Carbone 
e acrescentaria ainda que Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas é de grande relevância para a comunidade LGBT, tanto no tocante a preservação da memória de todos aqueles desse segmento tão marginalizado da sociedade que também viria a sucumbir diante aos horrores do nazismo, como uma consistente contribuição para a sua historiografia. Até então apenas ouvíamos falar um tanto vagamente das agruras dos homossexuais (em sua quase totalidade masculinos) perseguidos, aprisionados nos campos de concentração e deliberadamente mortos pelo regime totalitário nazista. Sem contudo conhecermos pormenores do contexto histórico de todo esse processo que o documentário levanta e magnificamente relata.

Claro, apesar da qualidade e excepcionalidade de Cabaré Eldorado, esperamos que as pesquisas continuem avancem, nos possibilitando novas elucidações sobre essas pessoas inseridas em todo esse momento temporal.  

Apenas discordo de um dos produtores, quando ele diz que o segmento LGBT atual não é uma continuidade daquele contextualizado no documentário. Primeiramente porque faz parte da sua história, segundo devido a todos os avanços conquistados por esse segmento da sociedade alemã tendo como referencial justamente sua segregação e opressão intensificada nesse tenebroso momento. Muitos sucumbiram, mas de certo alguns sobreviveram tanto para contar o que aconteceu, como para militar e preitear por direitos, quebrar paradigmas e dar sim continuidade a história. 

 

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