Crítica | Festival

Caminhadas Noturnas

(Promenades Nocturnes, CAN, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Ryan Mckenna
  • Roteiro: Ryan McKenna
  • Elenco: Marie Brassard, Sarianne Cormier, Martin Dubreuil, Hamidou Savadogo
  • Duração: 63 minutos

Ryan McKenna é um diretor canadense de aparência muito jovial, mas está quase chegando ao vigésimo ano de carreira, com alguns longas no currículo, infelizmente de pouca circulação fora de seu país. A julgar pelo filme que o trouxe literalmente à Mostra SP 2023, Caminhadas Noturnas, imagina-se porque sua filmografia viajou pouco. Não poderia mesmo ser obra de um jovem diretor em sua primeira incursão o que é feito aqui, uma das experiências sensoriais mais gratificantes da temporada. Digo isso porque McKenna não está interessado apenas em mapear a tela grande com uma narrativa, um conjunto de atores que passeie pelo ecrã, ou uma cadência específica que o gabarite para o que conceituamos enquanto cinema. 

Ao mesmo tempo em que até poderia ser incluído no hall do ‘cinema de fluxo’, Caminhadas Noturnas também tem uma narrativa muito clara e consistente sendo desenvolvida, que poderia estar dentro de uma ideia mais clássica. É, por onde se olhe, um projeto que não está todos os dias demarcando espaço dentro da programação natural da cinefilia, e mesmo que nossa imersão não seja completa, há de se observar seu cuidado em abordar algo tão frugal da existência, ainda que não exista a responsabilidade formal que McKenna apresenta aqui. De outras formas, obras como Meu Pai, no cinema, e O Jardim, no teatro, trouxeram já até o espectador maneiras mais originais e convidativas de se tratar o início da demência. Aqui, a ideia avança pela radicalidade, e os resultados são de rara beleza… mas como ser bonito em meio a tanta aridez? 

Ethel é uma mulher que caminha, como diz o título. Para fugir de uma possível insônia, circula pela madrugada de sua vizinhança, adentrando bosques locais e promovendo interação de profunda conexão com tudo que se relaciona. Ethel vive com seu marido, artista plástico como ela. Recebe, de vez em quando, a visita da filha, que se preocupa verdadeiramente com a mãe, em sua avançada idade. Em determinado momento, Pam atesta a sua mãe sobre o atual estado das coisas – e tudo que existia ao espectador, percorre então novo sentido. É uma guinada que se confunde com a própria ideia de narrativa estabelecida por Caminhadas Noturnas, porque a partir de tal esclarecimento, não apenas o que veremos a partir daí adquire novo significado, como também o que já víamos até então. É um mergulho sem rede de segurança em um momento da vida que nem todos iremos chegar, mas sob a qual deveríamos estar preparados. 

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E não, nada do que é feito, imagética ou narrativamente por McKenna, tem como intenção planificar um quadro, torná-lo mais didático ou embelezar uma realidade das mais sombrias. Tendo a certeza de que sua ideia é de, talvez, adentrar no universo de Ethel e sair dele mais humano, Caminhadas Noturnas propõe empatia com sutileza, sem pedantismo ou algum revés de perfumaria. É uma proposta de muito respeito com uma condição delicada e o que afeta também ao seu redor, tendo em vista que o envelhecimento é um processo do qual passam coletivamente os seres e também os seus entes. Tenho por mim que poucas vezes essa situação do estado de envelhecer tenha tido descrição visual melhor, com a possibilidade de que adentremos não apenas a situação em si, mas também seus desafios paralelos de aproximação visual. 

O resultado não é de adequado tom que se descreva, mas que se absorva, plano a plano. Mais alguns momentos precisam ser realçados, de maneira mais prática, como a sequência do pijama, que precisa de uma entrega absurda entre suas atrizes. E é por conta dessa entrega, principalmente da parte de Marie Brassard, que encontra-se a assinatura da excelência de Caminhadas Noturnas. Pois tudo que passa pelo material fotográfico, pela montagem intrincada e pela decisão estética do projeto de McKenna, só é realçado pela corporificação de Brassard, que com garra, enfrenta os desafios de encontrar uma mulher que está se perdendo na escuridão da memória. O conjunto dessa atmosfera de beleza e opressão, de encanto e desespero, de arrebatamento visual e devastação emocional, tem o fechamento de um círculo na bravura dessa atriz, que coloca todo seu manancial à disposição do projeto. 

[47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Um grande momento

O pijama

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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