Cassino

Gianluca Cozza gosta do que a escuridão da noite profunda esconde. Após co-dirigir (junto a Leonardo da Rosa) o impactante Madrugada, ele está sozinho em Cassino, ampliando seu olhar junto a um tempo de espera e da elaboração para tal tempo, além de adentrar um estado de possibilidades fantasmagóricas que injetam fascínio ao seu trabalho. É como se acompanhássemos um trio de espectros desencarnados quando a eles é permitido espaço, pessoas que vivem à margem como se não existissem, porque socialmente lhes foi negado qualquer tipo de oportunidade. A comunicação com Tato (que está aqui na Panorama) é quase como descobrir um complemento entre realizações e suas possibilidades temáticas. 

Se em seu filme anterior, onde o breu que a antemanhã propiciara ao projeto já carregava as imagens para um lugar de gênero, em Cassino isso é assumido logo na ação inicial, quando seus personagens caminham translúcidos pelo litoral, motivando nossa percepção para esse aspecto. Estamos diante não necessariamente de fantasmas tradicionais, mas de um um grupo que representa tantos outros – à margem da sociedade, cabe aos protagonistas aceitar a marginalidade que lhes é imposta. Ou não. Ainda assim, a movimentação que cabe a Soninho, Daniel e Tando é restrita, e os diálogos que vemos serem apresentados ao espectador remetem a tais restrições, e ao desejo plantado do conhecimento de um mundo além. 

Em meio a incursões criminais, que revelam uma realidade marginal apresentada entre o prazer e a possibilidade única, Cassino abre os olhos para atentar a um sonho burguês de mudança e ao reconhecimento de suas capacidades. Um desses seres da noite esteve ausente a um tempo atrás, e vamos descobrir junto aos outros dois que tal motivação era palco de um contexto maior. Independente do que surgiu de externo nessa aparente reviravolta, isso também motivou aquele ser de uma oportunidade que não parecia possível a nenhum dos três anteriormente. A capacidade de elaborar uma perspectiva de um futuro que não inclua o fim, mas o início de algo e a progressão gradual para um projeto maior. 

É quando percebemos então que a porção de gênero do filme também atenta a esse apreço pela finitude que é imposta a seres periféricos. Não há qualquer possibilidade de elaboração onírica que não esteja ligada ao horror e a violência. A estruturação da derrota que o Estado impõe aos seres nos coloca sistematicamente em uma zona de repreender o que nos é sutilmente oferecido, para que não consigamos aventar um gradual alcance de futuro. Como se Cassino mostrasse que nosso campo de atuação é definido desde que nascemos e não há qualquer opção que não a de nos mantermos fora da possibilidade mínima de desejar diferente, de experimentar saídas diversas para a realidade imposta. 

Cozza tem segurança no que faz, nos riscos que corre, e consegue não deixar seus temas solitários. Cassino conecta esses dois mundos onde seus personagens se inserem, o horror dos signos e das possibilidades mundanas, para conjurar essas imagens em um campo de aprisionamento contínuo. Existem os chamados para as mudanças que serão acionados a cada nova experimentação para longe do conforto, mas eles sempre terão a espreita de registros fotográficos que capturem a possibilidade do gênero se impor. Não será através da apresentação natural que tais seres sairão de uma prisão sistêmica, mas com a necessidade de liberdade dos campos permitidos a tais figuras que só conheceram a restrição. 

Dias depois da sessão, Cassino ainda conversa muito com o espectador, é uma das sessões da Mostra Tiradentes 2024 que ficará indelével. Com seus signos que conjecturam o horror contínuo das vidas periféricas, com a possibilidade de desaparecimento sempre a rondar, com o campo de esperança que pode ser regado a qualquer novo encontro, Cozza mostra vislumbres de resgate para a esfera filmada. Por trás dos fantasmas que estão dispostos a nos tragar para dentro da escuridão, também vai exalar um sopro de confiança e amor (próprio, inclusive) que pode ser estopim de um novo tempo. Basta permitir-se.

Um grande momento

Fotos na escuridão