Crítica | Festival

Cloud

Um novo Mefisto

No Japão contemporâneo de Cloud, um clique pode abrir portas ou transformar tudo em ruína. Kiyoshi Kurosawa, mestre em capturar inquietações humanas, cria um universo menos sobrenatural do que o de Pulse ou o de Cure, mas igualmente assombrado, o do comércio eletrônico, com seus algoritmos, fraudes e ressentimentos. Protagonizado por Masaki Suda, o filme acompanha Yoshii, um operário que abandona a rotina fabril para vender produtos online, apostando no lucro rápido. Ele prospera, mas às custas de clientes enganados, mas deixa um rastro de rancor. De potencial conhecido, a fúria virtual se materializa e a história toma um rumo da violência física.

A falta de conexão pessoal, tão comum na contemporaneidade, está por toda narrativa. Nas trocas virtuais, não há intimidade, nem rosto, nem história. Tudo se reduz a transações rápidas, entregas impessoais e contatos esvaziados. Até o que parece profundo é raso, o que parece sólido é líquido. Nesse terreno, não conhecer verdadeiramente as pessoas abre espaço para a criação de vínculos frágeis e, ao mesmo tempo, para a formação de grupos de ódio de forma acelerada. A violência nasce amparada pela distância, potencializada pela sensação de proteção que vem do anonimato, até se tornar concreta. Kurosawa constrói essa paisagem com a mesma precisão que marcou seus filmes anteriores. São planos longos, ambientes frios e silêncios incômodos. O antigo apartamento de Yoshii, a despensa da casa nova, e até mesmo a cafeteira funcionam como metáforas de um mundo onde o contato humano é rarefeito. Cloud não fala apenas sobre negócios online, fala sobre o isolamento e o que ele constrói, ou melhor, destrói.

Há ainda o elemento metafísico, que aproxima o filme da lenda de Fausto. Não se trata de um dilema moral sobre o bem e o mal, mas de uma jornada em que o personagem também movido pela desilusão toma o rumo indevido, como se fosse o médico alemão que negocia com forças do mal. Yoshii vende seu caráter e sua honestidade em troca de uma promessa: ascensão rápida, dinheiro, uma ideia de controle. E como no mito, o caminho é menos sobre a conquista e mais sobre a degradação silenciosa que se acumula a cada passo. A aproximação também está na própria estrutura narrativa e em sua quebra da primeira para a segunda parte, como acontece na mais conhecida adaptação da história, a peça de Goethe. No filme de Kurosawa, o suspense silencioso inicial se transforma em um terreno de ação e confronto aberto.

Visualmente, o longa mantém o rigor do diretor. O som é quase cortante, o enquadramento reforça a solidão e a ausência de calor humano. A violência, quando chega, é direta e sem glamour, mas ainda assim vem estetizada, com boas passagens de perseguição e resquícios de faroeste em um espaço saturado de tensão e ação. Kurosawa não busca saídas fáceis. Construído sobre um cenário que a própria globalização alimenta, Cloud deixa o desconforto diante de um retrato universal.

Um grande momento
Akiko se revela

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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