Crítica | Festival

Criaturas da Mente

Gente dentro da gente

(Criaturas da Mente, BRA, 2024)
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Marcelo Gomes, Sidarta Ribeiro
  • Roteiro: Letícia Simões, Marcelo Gomes
  • Duração: 84 minutos

O sonho enquanto objeto científico é relativamente recente. Uma das vanguardas desse estudo está no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, liderado por Sidarta Ribeiro. Partindo de uma experiência de abstinência de sonhar, Marcelo Gomes, diretor de Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo, embarca na discussão da pesquisa sobre o sonho em Criaturas da Mente, integrando saberes ancestrais, religião, transe, psicodelia e até o carnaval. O documentário redefine a abordagem clássica da ciência e incorpora a alma brasileira para a reflexão, potencializando a mensagem e mostrando os diversos mistérios da mente que envolvem a dimensão onírica.

Sidarta é autor de diversos livros e textos científicos sobre o sonhar. Sua pesquisa é referência mundial, e os impactos culturais de seu estudo o fazem ser um dos maiores cientistas brasileiros (e brasiliense!) da atualidade. A inquietação gerada pela interrupção dos sonhos durante a pandemia levou Marcelo Gomes a entrar em contato com a produção de Ribeiro e se motivar a fazer um filme sobre o fenômeno dos sonhos. A trajetória da produção do filme nasce da necessidade de defender a ciência e a cultura tão fortemente atacadas no último governo. Esse viés político, no entanto, acabou por não entrar no longa, que foca na complexidade da mente e na importância da dimensão inconsciente na constituição dos sonhos e das chamadas criaturas da mente.

Conforme explicado por Sidarta, as criaturas da mente, que dão título ao filme, são as personagens que habitam cada um de nós, como sugerido pela expressão “tem gente dentro da gente.” Elaborada através de grandes entrevistas, a dimensão social desses sonhos, que emanam do substrato mental, tangencia diversos aspectos da manifestação do inconsciente. Algumas dessas experiências estão magistralmente retratadas, como a vivência de Ribeiro com o DMT ou a entrevista com Mãe Beth, que expõe as implicações das criaturas da mente de maneira poética e estrondosa. Apesar da motivação inicial ser individual, a mensagem que o longa traz é de cunho coletivo, bordada através de enxertos de outros filmes de Gomes, principalmente sobre o carnaval.

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A dimensão carnavalesca dos sonhos está incrustada na cultura brasileira, dando origem a folclores e tradições que emanam o poder onírico. Algo de peculiar é posto em questão quando a ancestralidade brasileira é evocada para entender o fenômeno a partir da coletividade. Ailton Krenak contribui com a discussão ao trazer as raízes que sustentam esse pensamento cultural ao discorrer sobre a Ayahuasca e sobre o povo Xavante. Ficam claras a dimensão desse fenômeno e sua importância no pensamento de uma sociedade, assim como os impactos epistemológicos, que guiam a produção e valorização de conhecimentos em uma cultura.

Por outro lado, a individualidade do diretor também tem seu impacto na personalização da experiência, o que às vezes pode fazer a discussão perder tração, mas traz o relato sincero na perspectiva de quem busca entender mais. Alguns diálogos se mostram acessórios ao conteúdo principal trabalhado pelo longa, deixando a discussão mais profunda de lado e expondo outros entendimentos. Ao longo do filme, belas animações capturam a essência desse passeio sobre a natureza dos sonhos e da mente de maneira psicodélica. Mesmo que às vezes essas interpelações pareçam alongar a experiência, elas proporcionam um respiro desejável para absorção das informações trazidas, sempre de maneira clara e acessível.

Criaturas da Mente aborda um tema ainda pouco valorizado e sem muito espaço na dinâmica capitalista. Em um misto de divulgação científica e exploração dinâmica, Marcelo traz Sidarta para uma exposição necessária de conexões entre saberes valiosos, mudando perspectivas sobre a mente e transfigurando ideias coloniais sobre nossa cultura. O sonho é o caminho pelo qual podemos construir um novo ideal de nação, e devemos alimentar as criaturas da mente para isso.

Um grande momento
O polvo sonhando

Rodrigo Strieder

Quase publicitário, nerd, viciado em ficção científica, jogos e cinema, foi o primeiro participante do projeto Crítico Mirim do Cenas de Cinema. Depois de participar como jurado de festivais, arriscou suas primeiras linhas e segue até hoje escrevendo.
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