- Gênero: Drama, Suspense
- Direção: Saela Davis, Anna Rose Holmer
- Roteiro: Fodhla Cronin O'Reilly, Shane Crowley
- Elenco: Emily Watson, Paul Mescal, Aisling Franciosi, Declan Conlon, Toni O'Rourke, Marion O'Dwyer, Brendan McCormack, Lalor Roddy
- Duração: 95 minutos
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Críticos de cinema seriam como juízes de futebol, não deveriam expressar suas predileções publicamente. Seus gêneros seriam todos os gêneros, seus diretores favoritos seriam todos os diretores, não existem astros de preferência ou mesmo cinematografias; precisamos estar abertos a tudo. Somos todos criaturas do Senhor, no entanto… e, no meio de meus tantos atos falhos, já declarei muitas vezes que me identifico com dramas humanos cheios do que chamo de ‘pessoinhas’, em contrapartida ao que seriam biografias e títulos de repertório emocional ilimitado – e exasperado. Essa estreia no cinema Criaturas do Senhor me faz recordar de onde vem esse fascínio que os pequenos gestos, afetos e sentimentos me dobram a um lugar de interesse genuíno.
Dirigido por Anna Rose Helmer e Saela Davis (respectivamente, a diretora e a montadora de um filmaço indie chamado The Fits); a primeira, já teve algumas experiências, a segunda está em sua estreia. Em comum, essa parceria anterior já estabelecida e que, aqui, parece madura o suficiente para que não percebamos muito além de uma única condução coesa. O pôster original do filme, onde uma única foto é desdobrada em uma série de closes, de olhos, bocas, mais ou menos aproximado, da mesma dupla protagonista, dá ao espectador a medida exata do que ele irá acompanhar, e do que é importante acompanhar a partir do roteiro de Shane Crowley e Fodhla Cronin O’Reilly. Há uma base maior – e que mesmo assim, é muito íntima – mas a nossa percepção segue o que não está no plano óbvio.
Podemos dizer que Criaturas do Senhor é uma produção sobre resgates, ainda que seus personagens não saibam a todo momento exatamente o quê ou quem está em processo de recuperação. Brian retorna para retomar relações que ele encerrou antes do tempo, sua mãe aos poucos percebe recuperar uma individualidade a qual nunca tinha dedicado muito tempo. Sarah, no entanto, é a personagem-chave do roteiro; ela está em um processo que não é apenas individual, mas em busca de um coletivo do qual não está preparada para impulsionar. Dentro do hoje e de uma ancestralidade, Sarah é a figura que tornará o futuro um pouco menos sombrio, permitindo que as luzes que acessa sejam também faróis para todos que estão à sua volta.
É uma sociedade pequena, sitiada à beira-mar, de onde dependem de homens e mulheres a subsistência conjunta em torno do que é pescado, mas que o patriarcado é uma sombra que não demora a dar suas caras. Quando há uma dúvida a pairar, o machismo dará sua resposta acerca da razão, sem esperar qualquer indício de esclarecimento. Nesse sentido, Con é uma figura que parece isenta ao resto daquele universo; foi degredado e, hoje, parece ser o único entre seus pares que enxerga antes que o farol lhe seja fornecido. Falta ao roteiro uma ou outra informação extra para que o quebra-cabeça soe mais concluso, mas essa é uma escolha de Criaturas do Senhor, pela dúvida e pela manutenção do não sabido, como uma porta de (in)compreensão.
Helmer e Davis compreendem um pouco melhor Criaturas do Senhor que seu roteiro, indo procurar nos detalhes e nas ausências o que deve permanecer revelado nesses esquemas, por trás dos muros e das certezas. Outra situação que ajuda a narrativa a se esquematizar é a sensação do tempo espaçado, que não sabemos exatamente onde chega. O rosto de Aileen e suas decisões prioritárias são antagônicas, mas quando a situamos no espaço-tempo que o filme abriga, tudo parece mais ajustado dentro de uma lógica dos afetos. Estamos falando de uma mãe em questionamento com sua moral, com uma cobrança externa, com a própria maternidade, com uma sororidade que ela compreende mas que só agora precisa pôr em prática decisiva. Não é fácil para assimilar ou perdoar, mas nada ali naquilo microcosmos está muito bem assentado; as coisas passeiam entre o instinto e a obrigação, pouco com a verdade.
Criaturas do Senhor, ao se debruçar sobre os fantasmas retrógrados do machismo, mostra que o futuro depende de cada um de nós para a desregulamentação de práticas arcaicas. É olhar para essas assombrações, para esse horror que ainda não foi exorcizado a contento, e perceber que o sol está tentando entrar, mas que também cabe a nós permitir sua proximidade. É o que fazem Sarah, Erin e Aileen, essa última ainda imersa em outros tempos; a contínua movimentação rumo ao futuro mostra o quanto ainda precisamos evoluir. Não é o suficiente, e não será com ausência de dor, mas é o certo a ser feito. No caminho, olhar para cada rosto, cada gesto e cada ação, e preconizar a diferença. Graças também a um elenco impressionante, onde Paul Mescal (indicado ao Oscar por Aftersun) é o nome do momento mas é de Emily Watson (indicada ao Oscar por Ondas do Destino) o imenso destaque, poucas arestas ficam a ser aparadas.
Um grande momento
Mãe e filho no barco