Crítica | CinemaDestaque

Deadpool & Wolverine

À sombra do rato

(Deadpool & Wolverine, EUA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Aventura
  • Direção: Shawn Levy
  • Roteiro: Ryan Reynolds, Rhett Reese, Paul Wernick, Zeb Wells, Shawn Levy
  • Elenco: Ryan Reynolds, Hugh Jackman, Emma Corrin, Matthew McFadyen, Morena Baccarin, Rob Delaney, Jon Favreau - e mais um monte de gente que, se eu fosse você, não iria pesquisar no imdb; a graça é encontrá-los só na hora H
  • Duração: 125 minutos

Assim que os protagonistas de Deadpool & Wolverine chegam a um lugar chamado “O Vazio”, o filme começa a se revelar para o espectador de uma maneira bem distinta ao que as imagens estão mostrando. Ok, o cinema é uma arte subjetiva… talvez esse público a que me refiro (ou melhor, o público de “filmes de boneco”, que estão sedentos por um novo) não esteja disposto a ler o filme de uma maneira diferente ao que está na superfície de um produto com a chancela Marvel Studios. Mas acho que sou mais capaz de produzir um texto que vá além do “essa é o estúdio de Kevin Feige distribuindo mais um monte de fan service indiscriminado” – todo o direito do colega que fará isso; não serei eu. Até porque não tenho nada a reclamar sobre uma das raras coisas que eles conseguem entregar com capricho; produzido para fãs, os filmes de super herois tem que agradar a eles mesmo. 

Retomando o parágrafo anterior, eu diria que estamos diante do que talvez venha a ser o único caso de mea culpa de um conglomerado verdadeiramente nocivo, como a Disney. Paralelo a bonitinha história de percepção da própria irrelevância, tentativa, erro e ânsia por reconstrução de um sujeito, o que Deadpool & Wolverine serve à margem do serviço para os fãs é um compêndio sarcástico sobre a sua própria ganância. Na maior parte do tempo, o roteiro escrito a 10 mãos (inclusive, e puxando o bonde, as de Ryan Reynolds) está a nos esfregar na cara que a 20th Century Fox, um dos estúdios mais longevos e criado na era de ouro hollywoodiana em 1935, foi comprado pela Walt Disney Company. Isso parece um comentário burocrata? Acredite: não é. Essa é a sombra que paira durante a maior parte do tempo sobre o filme, justamente por conta desse lugar, “O Vazio”. 

Contra o spoiler como sou, me resguardo no direito de não informar minha interpretação – na verdade, nesse caso não tem muita opção de outra, a situação é meio explícita – a respeito do significado do espaço, mas é nele que se passa mais de 50% da ação do filme. Logo, sua análise tem importância ímpar, e sua tradução, dali até a “primeira cena pós-créditos”, é uma tradução quase literal sobre o quão simbólico de algo maléfico é a fusão de dois estúdios, conforme foi feito aqui. A Disney apagou uma palavra do nome do estúdio, domina suas decisões criativas, e pode não ter percebido o quanto Shawn Levy e Reynolds angariaram de carinho pelo estúdio, mostrando o estado que o camundongo mais rico do mundo deixou no símbolo de um tempo. 

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Chapado na frente do telão, está essa fissura palpável que um ator tem de se sentir amado, e ter sua voz validada. Deadpool & Wolverine é tão debochado quanto seu protagonista sempre foi, mas sabem aquele ditado “é brincando que se diz a verdade”? Pois então, o ator Ryan Reynolds tem ego igual a qualquer outro ator, e de verdade o Deadpool não tinha sido incluído em lugar nenhum da Marvel. Nesse novo filme existe outro peso, que é o do seu claro desapontamento por tal, e seu empenho em se tornar representativo e seu genuíno pedido por visibilidade vaza da tela, de seus olhos, de todos os lugares. O que vemos então também é da vontade de seu protagonista em se fazer notar, ter personalidade suficiente para peitar seu novo estúdio e clamar por um lugar ao sol que talvez não chegue nunca. Mas a partir daqui, ele também não poderá continuar a dizer que não teve uma equipe para chamar de sua. 

De alguma forma, e mesmo com o bom humor característico que levanta um sem número de cenas impagáveis e frases muito azeitadas, Deadpool & Wolverine tem uma tendência à melancolia que fica gravado em sua realização. Talvez pelo pedido de salvamento que seu personagem principal (ator?) pede, talvez pela forma frontal com que trata a morte de um estúdio, espalhando seus vestígios e seus descartes pela tela. Independente da idade, aos que cresceram ao lado de Edward Mãos de Tesoura, Duro de Matar, Como Eliminar seu Chefe, Uma Secretária de Futuro, Titanic e incontáveis outros, bate uma sensação definitiva de despedida ao assistir o filme. É como se a partir daqui, finalmente uma ficha caísse, e a ousadia que o próprio filme se propõe fosse ser a exceção agora, e uma exceção que precisa de autorização para existir.

É como acompanhar os escombros após a destruição, a dor que é deixada para trás (e não é filmada) por um grupo de sobreviventes de um serial killer; em determinado momento, Deadpool & Wolverine chega a me remeter a O Silêncio dos Inocentes ou Seven, clássicos filmes onde seus assassinos desfilam sua contagem de cadáveres e propósitos. Os efeitos da passagem do furacão Disney estão em todos os lugares, mas eles não cansam de mostrar o sorriso de seus personagens, mas algumas cenas marcam mais que o dente branco dos atores, como quando A Equipe percebe que, enfim, teve seu encerramento, ao olhar pro alto e se despedir simbolicamente. São momentos que funcionam de maneira agridoce não para o filme, mas para quem percebe o propósito bizarro da coisa toda; ainda assim, o amargo no canto da boca esta lá. Quase consigo sentir a risada de Reynolds e cia., ao perceber que conseguiu montar uma homenagem à sua adolescência regada a Esqueceram de Mim e Milagre na Rua 34, a sua e a nossa.

De resto, não deve mesmo ser fácil assistir a um filme onde praticamente em todas as cenas existe um cabide para algo exterior – uma lembrança em forma de escatologia, um personagem que você não imaginava aparecer, uma alfinetada que o espectador jamais poderia imaginar. Não acho que Deadpool & Wolverine se resuma a isso, justamente pelos pontos que já levantei; existe uma locomotiva de ideias passando pelo filme. Taí, esse pode ser um defeito de válida atribuição; em suas pouco mais de 2 h, o filme não consegue dar a exata dimensão de tantos olhares que lança, em um só filme. São mesmo muitas cartilhas a contemplar, e talvez não existam atributos o suficiente para dar conta das queixas de um astro, de uma roupagem dramática para o outro, do lamento por um passado esmagado pela vontade de fazer dinheiro. 

Ainda assim vislumbro, no meio de tantos propósitos, também a portentosa metralhadora giratória que sai de um roteiro que, mais uma vez, tem a missão de nos entreter com o tanto de humor que pode provocar com suas incitações, sejam elas pré-programadas ou não. Uma coisa não podemos dizer do camundongo: ora bolas, se ele não aceitasse as piadas, era malvado por não aceitar; se ele aceita… “ah, é tudo um grande negócio, e é lógico que tais brincadeiras são aprovadas”. A turma do contra não ficará satisfeita nunca mesmo, então cabe ao espectador que está indo ao cinema ver um filme de super heroi compreender algo “bem complexo”: nenhum deles irá mudar o mundo. Ou o Cinema. Ou a Arte. Ou a Humanidade. Assim como todos os outros 100 produtos lançados nas últimas duas décadas, Deadpool & Wolverine é um produto do HOJE, 2024. Não, ele não fará sentido em 2055, nenhum deles fará… mas talvez o rastro de destruição que uma fusão predatória causa no status quo, seja algo a ser debatido lá na frente. Obrigado, Wade. 

Um grande momento
A chegada da equipe na caverna

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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