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Deixe-o Partir

A última aurora

(Let Him Go, EUA/CAN, 2020)
Nota  
  • Gênero: Suspense
  • Direção: Thomas Bezucha
  • Roteiro: Thomas Bezucha
  • Elenco: Diane Lane, Kevin Costner, Kayli Carter, Ryan Bruce, Otto Hornung, Bram Hornung, Lesley Manville, Will Brittain, Jeffrey Donovan
  • Duração: 113 minutos

“A vida é o que perdemos dela…”

Certos filmes tem o poder de nos tirar do prumo… olho pro computador e tento lembrar das cenas de Deixe-o Partir – em vão. Não vem uma cena específica, mas o filme todo em ondas. Poderia ficar horas aqui elaborando o que escrever sobre o filme novo de Thomas Bezucha que acaba de estrear no Première Telecine, e me vem a certeza de que o faroeste revisionista aplicado aqui me leva diretamente para o que de melhor já foi produzido no gênero, de Os Brutos Também Amam a Os Imperdoáveis, essas peças emocionais que exploram tanto o espaço geográfico externo quanto os mapas humanos de seus personagens.

O primeiro acorde da primorosa trilha de Michael Giacchino só toca às vésperas de completar 20 minutos de projeção, quando o filme dá seu primeiro solavanco. Até então, um silencioso e melancólico conto de luto parental se desenhava de maneira delicada, explorando os silêncios entre o casal George e Margaret Blackledge em sua dinâmica familiar devastada. Passo a passo, a narrativa justifica seus meandros e vai construindo o mosaico deste núcleo despedaçado. O que o filme nunca deixa o espectador questionar, até pela jornada que seus protagonistas farão, é o profundo sentimento que os une.

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Deixe-o Partir
© Focus Features

Vindo de inofensivos filmes familiares, Bezucha precisou de um sumiço de quase 10 anos para aparecer absolutamente amadurecido. Em tudo realçando os dogmas do faroeste tradicional, o filme escancara suas intenções quando o casal protagonista na direção de seus propósitos encostam em uma pradaria e encontram um nativo indígena, em uma das grandes cenas do filme – talvez a mais emocionante. O jovem relata, em diferentes passagens, como foi extirpado de suas raízes, transformado-se em uma figura vazia e resiliente. A presença desse personagem não é apenas referencial de gênero, o filme respeita muito a presença dele, a honra e tenta dar a dignidade que seu povo perdeu historicamente.

Baseado no romance de Larry Watson, Deixe-o Partir não se fundamenta em cima de situações inusitadas. Não, sua narrativa que transborda as cartilhas é um ponto de acesso à sua realização e a forma como esses elementos são posicionados dentro da obra, em seu tempo particular suspenso. Na conta dessa revisitação, os mitos dramáticos que nos acostumamos a acompanhar estão reconfigurados aqui para que sua abordagem sirva à mise-en-scène, ao acordo travado entre autoralidade e naturalismo, que insere um recorte de gênero tão reverenciado aqui quanto pouco visitado em uma chave humanista, com a histeria rasgando o molde firmado para certificar Cinema.

Deixe-o Partir
© Focus Features

O encontro entre a construção naturalista da história familiar dos Blackledge com a mitificação familiar dos Weboy, enquanto papel historiográfico do tradicional faroeste americano, é uma das chaves mais bem sucedidas de Deixe-o Partir. Enquanto um dado narrativo caminha com suavidade por uma raia de um cinema mais centrado na tradição humana do cinema indie, a outra fatia rasga sem pudor a tela em direção ao que são os chavões do gênero em todos os tempos, e no meio desse encontro, promover a subversão. Além da figura indígena retrabalhada, tem o papel da mulher enquanto figura central das resoluções da trama, não apenas no que concerne a teoria, mas também na prática, sem necessariamente acessar o discurso de empoderamento; ele está na disposição feita naturalmente.

Que o filme reutilize a figura de Kevin Costner (o homem por trás de Dança com Lobos, Wyatt Earp, Pacto de Justiça, entre outros) para mais uma vez ressignificar o tradicional western, e que Costner atravesse o filme como um observador servil prestes a atacar, é um claro sinal autoral que engloba até a escalação, assim como a de Diane Lane – ambos impressionantes em suas interiorizações que não apagam a turbulência interior. Mas a presença magnética de Lesley Manville (Trama Fantasma e Mais um Ano) demarca o quadro pretendido no olhar para a tradição do western para o cinema.

© Focus Features

Em uma produção sentenciada pela perda constante, por escolhas decisivas que nos são impostas e na audácia que alguns precisam ter na intencionalidade de mudar o rumo das coisas, o olhar arrebatador para a ferocidade adormecida em todos nós é uma das mais potentes versões que Bezucha apresenta em seu filme. O faroeste é também um conhecido gênero a lidar com a mortalidade prematura, mas ao propor uma nova ressurreição dentro do que ainda é possível alcançar, o diretor alça um voo não antes compreendido na carreira, daquelas revitalizações inesperadas e mágicas a um só tempo.

Um grande momento
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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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2 Comentários
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DORIVALDO OLIVEIRA
DORIVALDO OLIVEIRA
28/05/2023 22:05

O filme é tudo isso aí que você tão bem analisou. Não sei se foi intencional, mas o carro tem papel importante na trama, como os cavalos nos westerns.

Alexandre Figueiredo
Alexandre Figueiredo
11/05/2023 22:20

Faroeste moderno e humanista com um casal de idosos afinadissimos. Um bom filme!

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