Crítica | Festival

Diários da Caixa Preta

Luta inglória

Há dores que são de todas. Por mais qfue os eventos sejam individuais e despertem traumas específicos, o sentimento é coletivo, a comunhão da dor é inescapável. Ser mulher nesse mundo não é fácil. Mais do que isso, é terrível. É um mundo criado e feito para homens. Modelado para que o poder permaneça como foi estabelecido. Diários da Caixa Preta é um filme que não nos deixa em paz justamente por nos lembrar disso, a cada frame, a cada fala, a cada sensação que ele desperta. Sendo desconfortável por opção, abala uma parte da audiência por conhecer muito bem aquilo que explicita e por constranger a outra parte. No documentário, Shiori Itō conta a sua história. Ela filma a si mesma e a sua jornada ao encarar um sistema que nunca foi feito para protegê-la. E é impossível assistir sem sentir que aquele silêncio que tentaram impor a ela é o mesmo que tentam impor a todas nós.

Por ser tão íntimo, nos vemos o tempo todo ao lado da diretora-personagem, que se expõe completamente. Nessa supressão do distanciamento, ela segura a câmera como quem segura uma prova, ou como quem segura o próprio corpo, expondo não só a violência, mas o caminho exaustivo para se fazer ouvir e tentar provar que a agressão existiu. Cada ligação para a polícia, cada ida ao tribunal, cada entrevista se torna mais um pedaço desse peso absurdo que recai sempre sobre a vítima e, por tabela, sobre todos que estão juntos com ela do outro lado da tela..

O modo como tudo se mostra não busca polidez, não se interessa em impressionar esteticamente. Sendo direto e cru, única representação possível, perturba ainda mais quem assiste a um cotidiano que alterna entre força, desespero e exaustão. A repetição de forma e ambiente, torna o cotidiano palpável e vai construindo o caminho trilhado, expondo os altos e baixos de uma mulher que alterna entre a força e a fragilidade em sua luta inglória. Funcionando como um espelho, Diários da Caixa Preta não é só sobre Shiori. É sobre um mundo inteiro de mulheres que já tiveram suas vozes desacreditadas. É sobre um sistema que exige provas impossíveis e transforma o trauma em batalha jurídica interminável. É sobre saber que não basta sobreviver, é preciso resistir.

O que o filme mostra com mais força é a solidão de falar, mas também a importância de encontrar eco. Em cada pessoa que decide não se calar, existe um pedaço dessa mesma luta. Assistir é entender que a coletividade não é opção, é necessidade, pois nenhuma de nós segura esse peso sozinha. Quando a tela escurece, não existe alívio e o que fica é o incômodo, a raiva e a urgência. O filme não oferece catarse, mas companhia. E é exatamente isso que faz dele tão essencial.

Um grande momento
Desistir de tudo como opção

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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