- Gênero: Documentário
- Direção: The Myanmar Film Collective
- Roteiro: The Myanmar Film Collective
- Duração: 70 minutos
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Por longos cinco minutos, a câmera está posicionada do lado de fora de uma casa, onde militares foram prender uma mulher. Os motivos? A provável militância política e a forma deliberada que vários grupos insurgem contra os ditadores que promoveram o golpe militar em Mianmar, há mais de um ano. A câmera captura também o som proveniente da ação, onde uma mulher se recusa a obedecer a arbitrariedade e seu filho pequeno questiona aos prantos o porquê do ato, além de implorar: “não levem minha mãe”. Essa é uma das muitas passagens de pesadelo incrustadas em ‘Diários de Mianmar’, um filme que não cabe em definições possíveis, mas que estreia no país no festival É Tudo Verdade – e, infelizmente, é mesmo tudo verdade, aqui no caso.
Vencedor do prêmio de melhor documentário no último Festival de Berlim, ‘Diários de Mianmar’ não tem assinatura. Formado por um grupo de realizadores locais, que captaram as imagens de terror – ou produziram suas próprias imagens de terror – promovidas pelo governo ditatorial instalado no local, que impõem inúmeras formas de aterrorizar a população, como se preza a uma ditadura. Entre desaparecidos, assassinados e torturados por um sistema repressor, a perseguição política também é um ‘modus operandi’, e o filme salvaguarda as identidades de seus corajosos homens e mulheres realizadores, que trazem à tona momentos de verdadeiro apavoramento.
No lugar dos créditos, o que temos é a coragem de filmar atos trágicos nas ruas da cidade, ou de encenar o horror através da melancolia, do medo, do terror, do romance, do experimentalismo e até da poesia. É injusto encarcerar a produção em uma fala redutora como a que não passam de um grupo de curtas metragens reunidos. Apesar de não creditada, o trabalho de montagem, que enfileira as micro produções de múltiplos autores, tem um processo que não apenas intercala os títulos, como promove um diálogo entre eles, um a um, e assim criar linguagem cinematográfica em sua disposição. Não há aleatoriedade nessa ordem, mas um processo autoral que interligue os pequenos filmes a se tornar um só, de acordo com um acurado processo de camadas.
Há um cuidado, por exemplo, de intercalar passagens mais duras e inflexíveis do ponto de vista emocional, com momentos menos endurecidos, aberto a um olhar menos bruto. Ainda que a sensação ao assistir ao longa seja de constante medo e apreensão, o filme não tem interesse em promover material panfletário ou paternalista, nem mesmo misantropo. Isso é definido pela ordem de apresentação da montagem, e também de como essa fileira é compreendida como um pêndulo que precisa ir de um lado a outro. Que o filme já seja aberto com uma espécie de ‘tiktok’ do mundo bizarro, com uma influenciadora dançando na frente de uma fila de tanques de guerra, o filme consegue vender sua propensão ao reflexo de sua mensagem; afinal, ao largo da situação terrível na qual esse povo se encontra, o cinema deve ser maior do que simplesmente denúncia, e o realizado aqui é cinema, ainda que de resultados inesperados.
Entre os avanços narrativos que o filme exemplifica, o processo documental mais propriamente dito é a rede comum de estabilidade, mas mesmo dentro desse segmento, há o que ainda assim se sobressai. As interações de ao menos duas mulheres com militares, esbravejando e se colocando frontalmente contra o regime, são momento que nascem antológicos na produção. É o processo documentário em lugar de conforto, mas mostrando uma carga dramática e narrativa em plenitude com a consonância dos eventos em tela. Paralelo a ele, a ficção parece ter força menos evidente, embora exerça um papel de profunda carga emocional, sempre que pode, sem tirar a potência do todo.
Suas porções ficcionais são potencializadas quando o filme deixa o gênero falar livre. ‘Diários de Mianmar’, nesse momento, deixa claro o que todos já sabe sobre o cinema de horror: não há forma mais eficaz para potencializar a vida real, aquela de fundo naturalista. As sequências onde o longa se arvora por entre os meandros da narrativa direta recriam todo arsenal empregado até ali, por se tratar de uma metáfora muito acurada a respeito daquela situação no limiar de uma revolta justa, quando um povo inteiro se insurge contra o maior de todos os monstros sociais.
Um grande momento
A luz da cozinha