- Gênero: Drama
- Direção: Maureen Fazendeiro, Miguel Gomes
- Roteiro: Maureen Fazendeiro, Miguel Gomes, Mariana Ricardo
- Elenco: Crista Alfaiate, Carloto Cotta, João Nunes Monteiro
- Duração: 102 minutos
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Primeiro plano. Os três atores dançam em uma sala, a música e estética não remetem aos anos 1980 – eles são absolutamente anos 1980. Uma dance music com sintetizadores pra marcar a trilha, figurino da época, iluminação condizente ao período, imagem toda granulada e fosca. O que isso significa para a compreensão do todo? Essa abertura em Diários de Otsoga define um olhar para o artificial que rapidamente se instaura no projeto como sua bússola. Apesar do abraço ao naturalismo na narrativa que se desenvolve, o filme já nessa abertura, que pode soar descolada, garante um apreço pela quebra estrutural cheia de organicidade.
Miguel Gomes, o diretor de obras contemporâneas tão essenciais, como Tabu, As Mil e uma Noites e Aquele Querido Mês de Agosto, assume um projeto co-assinado por sua parceira Maureen Fazendeiro, e ambos desafiam normas tradicionais de construção narrativa, e como o melhor cinema português atual tem feito, emprega essas decisões na moldura de um projeto que não tem qualquer interesse em repisar um olhar estabelecido para o cinema. Essa já é a mola com a qual ele têm trabalhado em sua filmografia, aqui ganhando contornos que apontam tanto uma radicalidade de proposta quanto uma doçura de abordagem de seus elementos humanos.
Em cena, Cristina Alfaiate, Carloto Cotta e João Monteiro são essa tríade de amigos em uma bucólica casa de campo, prospectando sonhos e alicerçando experiências diversas, de maneira livre. Muito rapidamente, no entanto, essa estrutura é rompida em prol da quebra não apenas da quarta, mas de todas as paredes. Ao revelar os processos de construção de seus atores, de seus realizadores, e incluir pautas do nosso tempo em uma ideia de risco, Gomes e Fazendeiro assumem a honestidade para o espectador, e tentam trazer suas vontades para o enxuto elenco, que reage com um misto de espanto e letargia.
Há quem possa acusar os autores de não alavancar nada novo em sua criação e que seu longa já tenha sido texturizado anteriormente em outras paragens, a abordagem que eles aplicam aqui une todos os esquemas de produção ambicionando uma outra natureza de performance e do artifício, segmentando o olhar que o documentário costuma lançar sobre suas imagens. O que sua proposta abarca é a da performance além do que se entende como tal, reverberando o ato de se portar na frente de uma câmera já como uma representação; o corpo do ator já atento para a performance, seja em qual for sua leitura.
O jogo que é difundido em Diários de Otsoga não é o mais simples para esse tipo de esvolha narrativa. Não se trata apenas de transformar a ficção em realidade e vice versa; o que Gomes e Fazendeiro propõem é uma provocação que inclua todo o grupo de profissionais envolvidos na produção, chacoalhar seus papéis sociais e tirar da lupa uma nova configuração de suas funções. Carloto, Cristiana e João são apenas a porta de entrada mais óbvia para observação visual dos códigos ali descentralizados. Através dessa reorganização, tudo que é enfatizado, seja imagético ou verbal, muda de espaço cênico. Atores que são cenógrafos, diretores que são atores, e daí para expandir cada papel e integrar suas porções a uma ideia diferente de encenação, deflagrando o artifício do acesso.
O embaralhamento acerca do que é documento e o que é lirismo deixa Diários de Otsoga como mais uma voz contra a ditadura do real, que rege o cinema naturalista e não necessariamente o melhora ou certifica. É como um caminho que precisa ser aberto que embace ainda mais fronteiras que não precisam ser definidas. Que esse resultado seja alcançado inclusive discutindo a covid, o machismo, as Inter relações de poder nos espaços hegemônicos, só transforma a experiência filmica de Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro em mais um produto de excelência comprovada e definição difusa, como o grande cinema que tradicionalmente têm vindo de Portugal.
Um grande momento
“Eu não vou beijar”