- Gênero: Híbrido
- Direção: Juan Carlos Donoso Gómez
- Roteiro: Juan Carlos Donoso Gómez
- Duração: 79 minutos
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Transitando entre a arqueologia, a tradição e o crime, sem jamais deixar claro onde termina a culpa e onde começa o gesto de preservação, Huaquero, de Juan Carlos Donoso Gómez, traz o passado em moldes ambíguos. A encenação e a observação dão vida a memórias de ex-huaqueros – aqueles que escavam ilegalmente sítios arqueológicos em territórios andinos – e revelam como esse gesto, limítrofe entre destruição e recuperação, é ambivalente.
A tensão está marcada esteticamente, nas reconstituições ficcionais e nos depoimentos, ao desfazer uma fronteira rígida entre fato e invenção. Ao ver um objeto sendo moldado como réplica com argila, sabemos que há falsificação, mas também uma tentativa de reencantar aquilo que foi destruído. Além disso, nunca deixam de ser mãos legítimas que criam. Alguns artefatos são autênticos, outros são reconstruídos para parecer antigos, outros ainda, deriviações originais. A imprecisáo questiona a própria noção de originalidade e autenticidade cultural.
É inevitável sentir ali um olhar de fora que tenta compreender, talvez até descriminalizar, como parece ser a intencão. O filme carrega uma curiosidade que se estende para esse universo dos huaqueros como quem deseja trazer luz sobre algo sombrio, mas essa luz por vezes revela em um certo juízo implícito, seja na disposição no plano ou na escolha por narração. A narrativa, por sua vez, sem demérito, alcança outro ponto de questionamento ao aproximar e distanciar ao mesmo tempo: são homens que foram parte ativa da devastação e também protagonistas na reconfiguração do patrimônio devastado. Como se quisessem recuperar ao mesmo tempo que vendem, como se o subsídio cultural caminhasse de mãos dadas com o tráfico patrimonial.
A recuperação simbólica de elementos destruídos tem força, mas não garante o reencontro com o lugar original, o restabelecimento. Os huaqueros não devolvem apenas os objetos, eles os recriam, os reinventam, os circulam como mercadoria numa lógica que torna o tradicional e o sagrado negociável. Há quem recupere os traços ancestrais sem negar que aquele objeto agora participa de novas trocas, novos valores e novos mercados. Num presente dominado pelo dinheiro, o capitalismo se sobrepõe e deixa o questionamento sobre como honrar o passado quando o presente exige que ele satisfaça um outro valor de mercadoria.
Huaquero conversa com documentários que resgatam tradição e memória, mas que também revelam o desafio de reintegrar aquilo que foi usurpado, fragmentado e destruído. É o caso de Dahomey de Mati Diop, onde os objetos retornam ao continente, mas sua história já carregou tantos silêncios e rupturas que não encontra um lugar; ou de Replika, de Piratá Waurá e Heloisa Passos, que na reconstituição da memória manipulada e dos duplos que se pretendem originais busca manter a história de um povo. O filme de Donoso Gomez insiste que a restauração também é confluência. A reconstruição seria, portanto, contaminada pelo presente, pela perda, pelo poder.
À medida em que o espectador segue o percurso dos huaqueros, atravessamos desertos, ruínas, cidades densas e trajeto que escapa de ponto fixo. O deserto e o despojamento espacial reforçam a sensação de que estes artefatos não têm lar estável. O objeto, o ruído do tempo, a mão que fragmentou e a mão que tenta recompor permanecem em suspensão, em pergunta.
E, no entanto, é incômodo sair da sessão sem uma definição, uma definição concreta sobre aquilo que se assistiu e com tantas possibilidades de leitura. O que Huaquero nos impõe não é apenas a contemplação da ruína, mas o peso de reconhecer que muitos de nós participamos desse deslocamento cultural – direta ou indiretamente – e que “recuperar” nunca é gesto puro. O documentário nos obriga a encarar que nem toda restauração é reparação, e que existir no presente exige carga, reparo e consciência.
Um grande momento
A negociação


