Crítica | Cinema

Duna: Parte 2

Vaidade messiânica

(Dune: Part Two, EUA, CAN, 2024)
Nota  
  • Gênero: Ficção científica
  • Direção: Denis Villeneuve
  • Roteiro: Denis Villeneuve, Jon Spaihts
  • Elenco: Timothée Chalamet, Zendaya, Rebecca Ferguson, Javier Bardem, Josh Brolin, Austin Butler, Florence Pugh, Dave Bautista, Christopher Walken, Léa Seydoux, Stellan Skarsgård, Charlotte Rampling, Souheila Yacoub, Roger Yuan, Babs Olusanmokun
  • Duração: 166 minutos

Finalmente chega aos cinemas a segunda parte da última adaptação do clássico da ficção científica “Duna”. A sequência traz um novo tom à história, propondo um ritmo diferente e abordando mais intensamente os grandes acontecimentos da trama. Ainda que a fidelidade ao livro se perca nesse novo capítulo, a primazia estética continua sendo um ponto-chave para a transmissão das emoções e dos conflitos vivenciados. Mesmo assim, o valor contemplativo, antes onipresente, é deixado de lado e cenas de ação viram o foco, o que diminui o impacto que o contexto do mundo exerce nas personagens, gerando o efeito contrário, isto é, fazendo do universo consequência de suas escolhas.

Essa é uma opção acertada, considerando o que é desenvolvido a partir de Duna, onde Denis Villeneuve já contextualiza bem o planeta Arrakis e as disputas políticas que dão o pontapé inicial para o protagonismo de Paul, interpretado pelo mirrado Timothée Chalamet. Contudo, muitos detalhes são deixados de lado no que diz respeito à política, e isso não seria um problema se o contexto fosse trabalhado a priori. A consequência disso é deixar toda a complexidade das maquinações e decisões que movem os grandes conflitos da história no colo de atuações como as do ator e de Zendaya, que vive Chani, sua companheira. O diretor dá importância às imagens em detrimentos aos diálogos. Se estes fossem mais abundantes, a experiência poderia sustentar melhor a complexidade dos conflitos e a emoção dos diversos climaxes.

Timothée encarna bem o papel mas seu vigor não convence. Os conflitos vivenciados pelo protagonista o levam a fazer escolhas que transformam seu papel no universo. É um período sombrio no qual uma nova força messiânica é construída ao seu redor para que desempenhe o papel de salvador de um povo. O ator dá cabo a esses conflitos germinados no primeiro longa, porém seu arco de transformação em líder não é marcado com autoridade na performance, falta o tempero do anti-herói soturno. Esse é um desafio intrínseco ao personagem, provocado pela difícil relação entre uma pessoa estrangeira na função de messias e uma população indígena marginalizada, manipulada por eras pelas Bene Gesserit para acreditar numa profecia de emancipação.

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A desvalorização do contexto político por vezes faz passar um certo maniqueísmo. A tentativa de atualização do discurso da história original não consegue desaguar numa real mudança na perspectiva de quem acompanha a narrativa. A problemática é abordada de maneira muito crua, em poucos diálogos objetivos, e apenas alimenta a ideia de uma moral universal, ignorando assim os desvios e complexidades de cada personagem. Chani é o outro polo desse conflito de posições em relação a Paul. Zendaya, que de maneira magistral dá vida à personagem, consegue elaborar bem a tensão entre o casal, força motriz para o andamento de Duna: Parte 2, pelo menos na expectativa do diretor. Mesmo assim, ela acaba representando o estandarte da razão, pessoa cuja opinião e escolhas não são permeadas por contradições, alimentando uma divisão abrupta entre os lados “certo” e “errado”, tanto de cada personagem quanto das diferentes etnias e famílias.

Faltou espaço para uma perspectiva mais diplomática das guerras que caracterizam o longa, aproveitando o ritmo proposto no primeiro filme e complexificando a posição das diferentes personagens. Por exemplo, foram deixados de lado muitas oportunidades de exploração narrativa sobre as Bene Gesserit, irmandade secular que a mãe de Paul, Jessica Atreides (Rebecca Fergusson), faz parte. Esse grupo de mulheres compõe o núcleo duro de onde surgem os principais argumentos dos conflitos. É fato que as atrizes que fazem parte desse grupo (Charlotte Rampling, Florence Pugh e Léa Seydoux) entregam a obscuridade demandada, mesmo assim, seria feliz se fosse fornecido ao espectador maior contexto para aproveitar o mistério e a dúvida que fomentam.

Outra surpreendente performance é a de Austin Butler (Elvis) no papel de Feyd-Rautha, sobrinho do principal antagonista, o Barão Vladimir Harkonnen (Stellan Skarsgård), que também é interpretado de maneira genial, como no longa antecessor. A introdução desse novo personagem traz junto a maior parte da inovação estética nos cenários, sendo o planeta nativo dos Harkonnen, Giedi Prime, o palco que representa essa novidade, em especial a cena de luta na arena. Outras paisagens também impressionam, como os Sietchs dos Fremen, reforçando o ar apoteótico ainda presente, porém sem agregar muito à narrativa geral da trama. De qualquer forma, a construção estética é inegavelmente refinada, o som demonstra isso em qualidade e precisão, formando paisagens sonoras extremamente imersivas. Já a trilha sonora de Hans Zimmer não chama atenção como no longa anterior, nada de novo foi feito nesse departamento, infelizmente.

A escolha do discurso

A potência da representação estética se contrapõe à carência de diálogos e debates intensos, elaborações que poderiam ter sido exploradas para incrementar os conflitos morais. David Lynch em sua adaptação, buscou a expressão imagética surreal para transmitir todas as ideias do livro que não cabiam no curto tempo de um filme (a lá Evangelion), e deu errado. Diferente, mas não tanto, Villeneuve continua apostando na contemplação como recurso para transmitir tensões, porém abrindo mão da política com gogó, o que gerou vácuos nas diversas escaladas até pontos-chave da trama. Essa escolha deixou os conflitos num território mais simbólico e pouco material, valorizando cenas de ação e guerra, provocando um deslocamento do espectador da contemplação até a reflexão acelerada. O que parece um problema prático, na verdade toma forma como uma decisão de discurso, em certa medida, conveniente, considerando o contexto mundial atual e a influência cultural da mensagem do filme.

Frank Herbert publicou “Duna” em 1965. A mensagem que o autor queria passar transitava entre o anti messianismo e a crítica política ao mito do herói que surge para salvar uma nação. Tendo isso em vista, Duna: Parte 2 está banhado em pertinência, agregando críticas ao fanatismo religioso e a essa visão romântica da espera por um milagre político. Mesmo se tratando de um discurso simbólico, que pode alcançar mais pessoas e sensibilizar de maneira mais intuitiva, o maniqueísmo e a falta de complexidade nos conflitos morais do universo são negativos ao espectador atento. 

O conceito é bom, a execução honesta e, enquanto uma sequência, o papel é cumprido, não com a primazia da primeira parte, mas dando curso ao que foi proposto. A sensação que ficou é que seria melhor se fosse uma trilogia. A transição de tons entre um filme mais contemplativo/descritivo, que contextualizasse bem o universo e seus conflitos, para um filme mais ativo/resolutivo, se daria em tempo suficiente para manter a eficácia estética da imagem e a emoção das jornadas dos personagens. Seria o tempo ideal para apresentar melhor todas as partes da trama de maneira complexa e interessante, explorando detalhes e expondo contradições. 

Apesar disso, é uma boa adaptação e transmite ideias culturalmente pertinentes. Bom de assistir, não é um filme para se largar de mão ou dormir no meio, entretém com fartura e modifica perspectivas. ˆ, com todas as suas pendências, é forte, movimentado e belo.

Um grande momento
Paul e o Verme

Rodrigo Strieder

Quase publicitário, nerd, viciado em ficção científica, jogos e cinema, foi o primeiro participante do projeto Crítico Mirim do Cenas de Cinema. Depois de participar como jurado de festivais, arriscou suas primeiras linhas e segue até hoje escrevendo.
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