Crítica | CinemaDestaque

Emilia Pérez

Saudades de Coda...

(Emilia Pérez , FRA, MEX, BEL, 2024)
Nota  
  • Gênero: Drama Musical
  • Direção: Jacques Audiard
  • Roteiro: Jacques Audiard, Thomas Bidegain, Nicolas Livecchi, Léa Mysius
  • Elenco: Karla Sofia Gascón, Zoe Saldaña, Selena Gomez, Adriana Paz, Edgar Ramirez, Mark Ivanir
  • Duração: 130 minutos

Tela preta. No meio da imagem, um ponto de luz que segue crescente até que o espectador enxergue de vez do que se trata tal relevo: um trio de mariachis, adornados da maneira mais estereotipada possível, incluindo aí uma iluminação em led ao redor de seu figurino. Graficamente bem estruturado, esse é o plano que abre Emilia Pérez, o longa francês com o maior número de indicações ao Oscar no ano, e igualmente um dos filmes mais comentados deste início do ano. O que o aproximaria de uma matéria-prima polêmica é a abordagem cheia de arestas para serem aparadas para onde se olha. O resultado é um filme dinâmico, cuja estrutura narrativa é criada quase junto com o espectador, para que a conexão seja completa – e as qualidades se encerram aí. 

Essa primeira imagem sugere tudo o que não se realiza dali pra frente. É um sinal de coragem, audácia, e uma pitada de liberdade com o que achariam sobre uma possível visão carregada de estereótipos. Esses dois minutos iniciais são seus últimos dois minutos onde Jacques Audiard mostra que poderia encarar seu próprio projeto; se formos condescendentes, o primeiro número musical do filme também guarda alguma faísca. A partir de então, é o oposto da coragem que dá as caras; Emilia Pérez é um projeto pensado por alguém covarde, tanto no que narra quanto no que mostra. Realizador de alguns belos filmes, como O Profeta e o recente Paris, 13º Distrito, aqui está em cena o diretor de Dheepan; sem a cara de pau necessária para chafurdar no melodrama brega, a saudade de Baz Luhrmann (diretor do némesis desse filme, Moulin Rouge!) é evidente em cada fotograma. 

Não há estrutura cênica que suporte o que é feito aqui, simplesmente porque tudo é muito comedido, apequenado. Com vontade de ser uma vedete hollywoodiana, Emilia Pérez mal consegue ser uma corista desempregada, sem espaço e sem talento. Se houve alguma mira alta para quem o realizou, a flecha não foi sequer disparada; para construir um espetáculo, ou você consegue muito dinheiro ou muita criatividade – nem uma coisa nem outra aqui. O que resta, na frente da tela, tem sim nossa atenção, porque trata-se de uma história com ganchos ordinários, e isso qualquer “pior novela no ar” consegue. De posse do nosso interesse, Audiard o mina cena a cena com um desfiar de constrangimentos, e uma total incapacidade de transformar suas ambições em realidade. 

Em termos técnicos, não sei se é mais preocupante os louros dados a fotografia de Paul Guilhaume ou a montagem de Juliette Welfling. Ele é um dos grandes fotógrafos em ascensão, o cara por trás das imagens de Os Cinco Diabos, por exemplo, mas que aqui aparece com excesso de pendências a serem organizadas – o filme não tem uma luz marcante, mas precisa dar conta de muitos maneirismos oriundos de Audiard. Com isso, não cria-se uma marca em seu trabalho imagético, que inclusive depois da metade se torna lavado e asséptico. Ela é uma prévia indicada ao Oscar (por O Escafandro e a Borboleta), com um um currículo invejável, e que não injeta coesão no que é contado. Na ânsia de estabelecer um escopo para as muitas tentativas de inserção de gênero onde o musical seria a base, Welfling organiza bom ritmo ao todo, mas péssimo encadeamento de situações, chegando a tornar-se incompreensível muitas vezes.

As músicas compostas por Clément Ducol e Camille não tem qualquer carisma (aliás, nada no filme tem), e a impressão que o filme consegue passar é de que as letras passaram por muitos processos de tradução até chegar àquele espanhol, onde nada faz muito sentido no que está sendo cantado. O que mais incomoda em Emilia Pérez é a sua vocação para o desastre, e isso é percebido também a partir da trilha sonora. Cada um dos aspectos do filmes parece ter sido dinamitado para que não sobrasse resquícios das qualidades que seus profissionais entregaram anteriormente. Ducol, por exemplo, é compositor da trilha de Frango para Linda!, que obtém o resultado oposto ao que vemos aqui. 

Com uma premissa poderosa, porque praticamente nada deu certo em Emilia Pérez? Ouso conjecturar que faltou humildade (e obviamente sobrou arrogância) dos envolvidos, para que fosse percebido que representatividade não pode estar somente nas intenções de quem realiza algo, mas principalmente no resultado final. Não apenas faltaram mexicanos pela produção, como também profissionais trans que organizassem o que foi feito, e pudessem atestar antes do filme ganhar a luz do dia, os erros crassos cometidos. E coletivos, já que ainda que fosse estrelado por atrizes mexicanas e rodado em solo mexicano, com esse roteiro apresentado, não existiam muitas chances de dar certo. 

Para quem estava em Marte nos últimos meses, o filme conta a história de uma advogada cansada pelas dores do mundo vivida por Zoe Saldaña (em expressão que se situa entre a melancolia e o enfado) que é procurada por um narcotraficante que revela tratar-se de uma mulher trans em processo de redesignação de gênero. A união delas se dá pela necessidade da segunda em garantir sigilo para o que será feito, no que a primeira aceita mediante uma bolada significativa. Após uma pesquisa que incluem cenas vexatórias – e eu particularmente acho o diálogo de Rita com o médico mais vergonhoso que a ofensiva “Vaginoplastia” – o processo é concluído e as personagens se separam. Até que anos depois, já estabelecida, a personagem título volta a procurar a advogada, para que ambas formem uma dupla que investiga o desaparecimento de jovens mexicanos, muitos que ela mesma deu cabo no passado. 

Se existe um mérito em Emilia Pérez, ele chega para calar parte da cinefilia (e alguns críticos) a respeito da necessidade de um roteiro bem desenvolvido, com relevo de personagens que façam sentido. Pois bem, mesmo a oito mãos, nada foi feito nessa direção; do quarteto central, não sabemos qual personagem é menos provido de propósito, ou sentido. E da trama narrada acima, temos apenas uma linha geral que não nos impede de boiar. Emilia (que um dia foi Manitas del Monte) ao menos tem coerência: não temos a menor ideia dos seus anseios iniciais, e continuamos na mesma toada após sua transição. E não, não basta que a narração seja responsável por tratar de um assunto, e aqui entra a inépcia de Audiar como diretor. Nada é sentido, experimentado pelo espectador, nada é compartilhado emocionalmente, e assim temos uma protagonista que não apenas redesigna seu gênero, mas principalmente sua personalidade. Muita coisa ocorre em quatro anos, mas o espectador não tinha o direito de ter nada compartilhado com ele? 

Rita, personagem de Saldaña, também não exerce qualquer função na narrativa, e seu arco dramático vai do nada para lugar algum. Sua abertura é compreensível, mas tudo o que acontece a partir dali não faz sentido, a ponto de Emilia precisar explicar a ela em determinada cena que sim, sua vida profissional é um sucesso. E é. Saldaña não ajuda, com uma interpretação até que tem presença, mas é só isso; sua expressão é única, seu aporte segue o que foi dado a ela para cumprir, e não foi dado muito. Não há informação que o filme forneça sobre ela (ela não tinha uma mãe?; como ela foi parar em Londres, e porquê?), e a despeito dessas linhas serem dispensáveis, infelizmente não estamos falando de um filme alegórico e sem diálogos, apenas com a vibração sendo aproveitada. Flow, que é exatamente esse filme, tem muito mais diapasão emocional e arredondamento de proposta. 

A verdade é que Audiard não tem o pulso necessário para realizar um musical, seja ele tradicional ou extravagante, como ele acredita que seu filme seja. Porque nada do que ele propõe, surte efeito em resultado na tela – seu filme não é caótico, não é clássico, não é rebuscado, não é sofisticado, não é arrojado, não é exuberante. Embora ele tenha certeza de que isso tudo está impresso em Emilia Pérez, o que temos é algo impensável para um filme que ouse sonhar em ser musical: um filme opaco. Não há brilho de qualquer forma, nem na construção dos planos (desastrosos), nem na decupagem (que parece nem ter sido feita), nem no elenco e muito menos no que depende dele diretamente. Se ele queria empregar delírio no que vemos, também não há; o filme é muito autoconsciente do que está sendo feito, para permitir que vaze dele algo de orgânico. E em todos os outros gêneros com o qual flerta – o policial, o melodrama, o blockbuster de ação – o experiente cineasta não consegue se encontrar, com uma comunicação em constante desacerto.

A despeito de todas as polêmicas que Audiard e sua estrela, Karla Sofia Gascón (uma boa atriz, que assim como Saldaña, não tem como mostrar nada além do estereótipo pedido), se envolveram nas últimas semanas (e das quais ambos deveriam ser igualmente culpabilizados), sobram problemas em Emilia Pérez e falta tudo o que foi tem certeza que fornece, carisma principalmente. Caindo em pontos muito nevrálgicos de discussão hoje a respeito de qualidade representativa, incluindo a destruição de corpos femininos – e o pior, sem qualquer motivo que justifique – o filme termina com o que, vou acreditar tratar-se de uma ironia, que está mal colocada, pessimamente encenada e sem qualquer andamento que indique isso, mas, vá lá, uma ironia. Porque se eu não imaginar aquilo como uma denúncia em cima de julgamentos morais que caem por terra, o quadro final torna-se ainda pior. Se é que existiria essa possibilidade.

Um grande momento
O plano inicial 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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