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Tic Tac: A Maternidade do Mal

Liberdade de escolha

(Clock, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Terror
  • Direção: Alexis Jacknow
  • Roteiro: Alexis Jacknow
  • Elenco: Dianna Agron, Melora Hardin, Jay Ali, Saul Rubinek, Grace Porter, Laura Elizabeth Stuart, Nikita Patel, Stefan Sims, Rosa Gilmore
  • Duração: 86 minutos

Na boa, tem uns momentos que parece que alcançamos um limite difícil de ser suplantado: o que passou na cabeça do Star+ ao batizar Clock de Tic Tac: A Maternidade do Mal? Se o filme sozinho já enfrentará uma enxurrada de problematizações (muitas, apropriadas) por seu conteúdo, nem sei o que dizer o quanto horrível é esse subtítulo, e suas múltiplas caras de pau e desserviços. É pra tirar o estímulo de qualquer um em assistir uma produção de camadas complexas, mas todas necessárias para um debate saudável. Dito isso, há sim por baixo de uma superfície aparentemente doutrinadora, um olhar cheio de empatia por uma liberdade que parece cada vez mais restrita à teoria, e sendo cerceada por quem mais deveria defendê-la; essa é somente a parte inicial da discussão. 

Escrito e dirigido pela estreante em longas Alexis Jacknow, impossível dizer que Tic Tac não é um filme de viés feminista. O debate sobre maternidade compulsória não poderia ser mais atual, e o filme acima de tudo está do lado do indivíduo – cada um deveria ter controle sobre suas ações, seus desejos e seu futuro. A pressão social e psicológica acerca da gravidez, de como uma mulher é considerada incompleta antes da maternidade, de como suas funções parecem só fazer sentido ao se tornar mãe, é algo que o filme encampa de cara enquanto vilanização. Ella, uma profissional bem sucedida em sua área, é compelida a encontrar uma motivação familiar que ela não sente necessidade de adquirir. Porém, a energia depositada por amigos e família pelo lado contrário é tanta, a ponto da personagem violentar suas convicções. 

E a auto violação não é o único ato de violência que Ella sofre em Tic Tac: A Maternidade do Mal. Refém de um estigma que consome todas as mulheres, a protagonista entra em uma espiral de delírio após sofrer um procedimento considerado infalível, passando a não conseguir distinguir ficção e realidade. É nesse momento que o terror do filme sai do campo psicológico e entra no terreno do concreto, ainda que na sua totalidade o filme lide com o horror constante dessa pressão absurda sobre o corpo feminino, e suas decisões. Se um homem consegue encontrar desconforto e atos de contínua violência sendo perpetrados, faço ideia de como o olhar de uma mulher verá tais imagens e a pressão desmedida por uma condição que não deveria ser obrigatória ou imposta. 

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Além disso, a maternidade que o feminino encampa em cena também tem uma outra conotação, que é a de mantenedora das tradições e nome familiares. Tic Tac carrega também em seu DNA um debate sobre a “função” da mulher dentro do judaísmo, através do matriarcado e seus significados. Muito mais efetivo que Oferenda ao Demônio no que concerne ao horror dentro da religião, Jacknow coloca uma porcentagem elevada de motivação no que a cultura judaica impôs à figura feminina durante os tempos. Por trás de uma ideia de conquista de uma voz ativa dentro de uma cultura religiosa ainda ativa, o que o filme mostra é a perda de direitos diante das próprias oportunidades para que seja feita a vontade dos homens, de sonhos que necessariamente não são das figuras femininas. 

Aos poucos, tudo que é mostrado em Tic Tac: A Maternidade do Mal vai ganhando novos contornos, quando o filme mostra de maneira irônica que, mesmo uma produção com uma maior parte profissional feminina, ainda é regida por valores disseminados pelo Homem. Como é um filme que prima pela liberdade de escolher o que podemos fazer, independente do gênero, narrativamente tudo acaba fazendo sentido no percurso de Ella. Se ela incorre pela tragédia, no momento que for, é porque seu corpo sempre ansiou por ser particular, e não uma versão “aprimorada” das escolhas alheias. Sob esse aspecto, tudo que a protagonista faz é por escolha própria, exatamente como pretendeu; para o bem ou para o mal, o importante é que foi sempre pensando no seu bem estar, na sua decisão. E que a religião e a sociedade se virem em ressignificar regras e preconceitos. 

Esteticamente, Tic Tac: A Maternidade do Mal cumpre suas funções no cinema de gênero. Tudo o que o filme busca, em sensações, imagens ou diálogos, é provocar um desconforto crescente e indisfarçável, daqueles impossíveis de escapar. Não se trata de uma produção de decisões óbvias ou estéreis, pelo contrário, o filme sabe muito bem como elevar o espectador de uma posição passiva dentro do cenário em que está, para um quadro de desespero coletivo. Em muitos sentidos, é uma experiência satisfatória, embora estejamos diante de um filme que possa incomodar seus espectadores pela forma como estabelece as ideias de conflito, e a forma como a protagonista é inserida na narrativa. E também isso pode ser uma sensação forjada pelo coletivo, de ideias e imagens.

Um grande momento

A mulher alta na estrada

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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