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Esperando Bojangles

Liberdade vigiada

(En attendant Bojangles, FRA, BEL, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Régis Roinsard
  • Roteiro: Olivier Bourdeaut, Romain Compingt, Régis Roinsard
  • Elenco: Virginie Efira, Romain Duris, Grégory Gadebois, Solan Machado Graner
  • Duração: 124 minutos

“Mr. Bojangles” é uma canção composta por Jerry Jeff Walker, gravada a primeira vez em 1968 e posteriormente entoada por nomes como Bob Dylan, Nina Simone, Harry Belafonte e tantos outros. Ela discorre sobre um homem que segue em busca de recuperar a alegria de viver após a morte de seu cachorro, que ele tenta reaver através da dança. É uma história dita verdadeira e ouvida na cadeia pelo tal homem, que a teria narrado. No filme que se tornou a marca do Festival Varilux 2022, Esperando Bojangles, a canção não somente está presente na trilha de maneira recorrente, como serve para aludir a personalidade de sua protagonista, Camille… ou seja lá qual for seu nome. Vivida com brilhantismo por Virginie Efira, será nas costas de sua Eurídice francesa que o filme irá erguer sua base. 

O diretor Régis Roinsard captura o espírito de sua estreia, A Datilógrafa, para encantar o público com uma história de amor maior que a tudo à sua volta. Adaptado do romance de Olivier Bourdeaut, o filme é carregado de uma atmosfera de sonho que não é alucinatória, imageticamente falando. Seu autor mantém as rédeas dentro do universo palpável, e incumbe a imaginação de realizar o que já está em sua premissa: as histórias nascem em quem as conta, mas se concretizam em quem as ouve. É dessa ideia de fabulação que, como sempre digo, é a própria base da criação cinematográfica, que o filme absorve o que de melhor a literatura lega ao indivíduo. Ao apostar no sucesso da imaginação, Roinsard se dedica a confiar no espectador e na qualidade do que o mesmo irá fazer com as histórias que ouvirá ao longo das duas horas de duração. 

Esperando Bojangles
Divulgação

É surpreendente o que a produção consegue uniformizar em qualidade, diante de uma premissa que poderia inclusive soar piegas e clichê. Não que isso seja evitado a todo custo, mas corre a impressão de que até isso é evitado ao máximo, e quando chega nesse ponto, sua condução leva naturalmente até esse lugar, sem forçar a barra. O talento do diretor em ambicionar iconografia do passado e transformá-la em suporte para as sensações vestidas em seu universo é que cria essa unidade. Diferente de sua estreia, aqui Roinsard não pretende vender uma ideia de cinema produzido no período, mas sim da criação de um ímpeto talvez só ainda presente ali, naquele estado. Buscar uma certa candura na liberdade com que vivemos, apostando no poder criativo para impulsionar os de caráter libertário, compreendendo que, apesar de tudo, a vida real está paralela aos nossos sonhos. 

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O poder ilusório empregado pelos protagonistas aqui, tanto a tal Camille quanto Georges, é o que os une de maneira irremediável, o que os conecta em seus anseios e o que faz com que eles criem uma família, das mais disfuncionais possíveis. Dessa união, nasce um filho que eles educam sob o mesmo prisma da imaginação – em resumo, os três são grandíssimos mentirosos sob um ponto de vista, ou talvez sejam pessoas muito mais interessantes pela criação coletiva de universos inexistentes. Mas o que é a existência, se não exatamente o conhecimento que passamos adiante, as informações que apreendem de nós e a forma como utilizamos todos esses trunfos? Desse encontro, da família que formam (e que ainda abriga Charles, um apaixonado por Camille que se torna o melhor amigo de Georges) é que o filme finca sua bandeira de ideal romântico, apostando no poder da fantasia como arma contra a rotina e a banalidade. 

Esperando Bojangles
Divulgação

Se em determinado ponto, poderíamos acreditar na homenagem que o filme estaria fazendo à essa liberdade artístico-romântica em sua ideia mais profunda, a de promover essa mesma liberdade em todos os compartimentos da vida, fica claro que Esperando Bojangles mostrará a cobrança de um preço que precisa ser pago. Camille, seja ela quem for, é uma paciente de bipolaridade, e isso é verbalizado desde o início pela mesma (“eu vou da alegria à tristeza muito rápido”), e como se trata de uma produção que almeja o engajamento do público, o freio narrativo precisa ser colocado para que se visualize as consequências de uma vida de liberdade. Nada é convencional em suas vidas, mas o filme insiste em outorgar limites a personagens que prezam sua personalidade de maneira tão ostensiva, quase indo contra às suas próprias naturezas. 

Assim como os outros filmes já assistidos até agora no Festival Varilux, esse é mais um onde o trio de protagonistas vale um capítulo. Além de mais uma interpretação acima de muitas médias de Efira, que vêm se tornando uma referência no cinema francês atual, Romain Duris, que também era o protagonista de A Datilógrafa, está em momento especial aqui, talvez o maior dos seus últimos trabalhos. Eles têm química de sobra e organizam uma mecânica muito conhecida de casais reais; eles são um casal, ponto, que por um acaso tiveram um filho. Amam essa criança? Sem dúvida, mas o amor entre eles é o maior e mais primordial, e os atores deixam essa conexão vibrante em diversas passagens, em singelos toques e muitas insinuações gestuais. Além deles, Grégory Gadebois também está superlativo, como o homem que viveu à margem dos seus amigos, sem jamais deixar de ser figura vital a eles. 

Esperando Bojangles
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Esperando Bojangles consegue transmitir todas as nuances que Roinsard pretende ao longo de sua duração alongada, nos injetando êxtase e profunda tristeza em iguais medidas. O lamento fica pela intenção de aprisionar histórias de liberdade tão irrestrita em uma narrativa moldada para um público menos exigente, mas que deseja enxergar um molde nas produções. 

Um grande momento
Diálogo durante o parto 

[Festival Varilux de Cinema Francês 2022]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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