Crítica | Festival

Salomé

Reinvencão do mito

A dança de Salomé atravessou séculos como metáfora de desejo, manipulação e poder. Do texto bíblico às versões de Oscar Wilde e Richard Strauss, a jovem que exige a cabeça de João Batista é figura de escândalo, punição e fascínio. Em Salomé, André Antônio transporta esse mito para o Nordeste brasileiro, reconfigurando-o como gesto de insubmissão queer. O que antes era lido como perversão feminina, aqui se torna afirmação política de um corpo que insiste em existir.

A Salomé encarnada por Aura do Nascimento abraça a herança do mito, mas recusa ser só alegoria. Há uma materialidade pulsante no filme, que ocupa os espaços urbanos, os cenários periféricos. São corpos que se colocam diante da câmera sem pedir licença. O anacronismo é assumido, e é nesse atrito que o filme encontra sua força. A dança não é apenas ritual de sedução, mas também rito de resistência contra séculos de condenação moral e religiosa.

André Antônio trabalha na contradição entre solenidade e delírio. Sua Salomé habita tanto a solenidade bíblica quanto a estética camp, em um cruzamento que amplia sentidos. A mise-en-scène aposta em enquadramentos que isolam a personagem, transformando-a em imagem mítica, mas ao mesmo tempo exposta à crueza da paisagem urbana. É a colisão entre o sagrado e o ordinário, entre a aura ancestral e a violência contemporânea.

O filme sabe que cada corpo queer que ocupa espaço público é também uma coreografia política. Ao revisitar Salomé, André Antônio resgata a imagem de uma figura vilanizada pela tradição e a reinscreve como potência. Assume o tom de delírio e traz à lembrança corpos condenados, silenciados e mutilados em nome da moralidade. O gesto se expande da memória bíblica para a memória histórica de toda comunidade dissidente.

O ritmo, embora frenético, encontra espaço para uma paciência quase litúrgica. A câmera permite que o tempo do movimento dos corpos se alongue, que a sensação permaneça mesmo depois da ação. Não há concessão ao entretenimento fácil e a força nasce justamente da repetição, da cadência que transforma o gesto em permanência. Essa insistência faz do filme não apenas uma reinterpretação do mito, mas também um espaço ritual, onde todos são convocados a compartilhar da resistência exposta na tela.

Salomé lembra que todo mito pode ser reapropriado e todo corpo pode reescrever sua história. Com suas danças e movimentos que cruzam séculos e geografias, encontra o ponto de interseção entre tradição e transgressão. O resultado é uma obra potente que transforma condenação em gesto de poder e de vida.

Um grande momento
Na cama

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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