Críticas

Hamnet: A Vida Antes de Hamlet

A maior dor do mundo

(Hamnet, GBR, EUA, 2025)
  • Gênero: Drama
  • Direção: Chloé Zhao
  • Roteiro: Chloé Zhao, Maggie O'Farrell
  • Elenco: Jessie Buckley, Paul Mescal, Emily Watson, Joe Alwyn, Jacobi Jupe, Olivia Lynes, Bodhi Rae Breathnach, Freya Hannan-Mills, David Wilmot, Jack Shalloo, Dainton Anderson, Elliot Baxter, Sam Woolf, Hera Gibson
  • Duração: 125 minutos

Existe uma felicidade sendo construída naquela casa, com tempo, com gestos cotidianos, com uma sensação muito concreta de abrigo. Nada é espetacular, tudo é vivido. A casa respira, os corpos se reconhecem, os dias parecem organizados por uma lógica de afeto e presença. Hamnet: A Vida Antes de Hamlet começa fazendo algo essencial: ensinando o espectador a habitar aquele espaço antes de destruí-lo. Quando a perda acontece, ela chega como ruptura existencial.

A morte de um filho é a maior dor possível. Não há comparação e nem elaboração que dê conta. O filme entende isso e, quando permanece com Agnes, não tenta organizar o luto em etapas ou oferecer consolo simbólico. O que se vê é o vazio absoluto, pois a ausência não é só do menino, é da própria ideia de mundo. Jessie Buckley entrega uma atuação devastadora justamente porque não dramatiza. Seu corpo parece vazio, deslocado, como se cada gesto fosse uma tentativa falha de continuar existindo. A dor não se manifesta em explosões, mas em permanência. Ela fica.

É com essa mulher que o espectador se conecta. Não com a história em si, mas com a dinâmica construída junto com ela dentro daquela casa. Hamnet cria uma intimidade profunda com esse cotidiano e, por isso, quando ele se rompe, o impacto é físico. Tudo o que vem depois é atravessado pela ausência que contamina o ambiente, os objetos, o tempo. A casa permanece, mas já não acolhe. O luto não é superado, é habitado.

William Shakespeare também perde um filho, também sente a dor, mas o filme nunca consegue tornar essa experiência tão envolvente. Talvez porque o pai estivesse ausente quando sua presença era realmente necessária, ou talvez porque Chloé Zhao já tenha escolhido onde está seu centro emocional. Quando a narrativa se desloca para acompanhar o bardo fora daquele espaço doméstico, algo se quebra. Não é uma questão de importância histórica ou simbólica, é de coerência sensorial. Longe daquela casa, o filme perde densidade.

A criação de Hamlet, uma das mais importantes peças da história, surge como resposta possível à dor paterna. Criar se torna forma de elaboração, de sobrevivência ou talvez de redenção. Mas Hamnet deixa escapar uma inquietação incômoda: a arte resolve a dor ou apenas a reorganiza? Ameniza a perda ou justifica a ausência? O gesto criativo parece funcionar para ele, mas isso não repara o que faltou antes. E tampouco se equipara à experiência vivida por Agnes, que não tem fuga possível, nem sublimação estética capaz de reorganizar o mundo.

É aí que se instala o desequilíbrio do longa. Não porque a dor do pai seja menor, mas porque ela é menos cinematográfica dentro da lógica que o próprio filme construiu. O espectador já está envolvido demais com a casa, com aquele luto materno e aquela relação visceral com a perda. Quando o olhar se desloca, o interesse se dissipa. Falta concisão e decisão. O filme parece querer abarcar mais do que consegue.

Ainda assim, o que permanece é poderoso. A experiência do luto materno é filmada com delicadeza e brutalidade ao mesmo tempo. Hamnet: A Vida Antes de Hamlet é mais forte quando aceita seus limites e permanece onde dói mais. Quando tenta se expandir, se fragiliza, mas o que ele constrói antes disso é tão intenso que continua reverberando, como um vazio que não se preenche. E talvez seja exatamente isso que o filme entende melhor do que qualquer outra coisa.

Um grande momento
A morte

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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