- Gênero: Drama, Suspense
- Direção: Elle Márjá Eira
- Roteiro: Peter Birro
- Elenco: Elin Oskal, Martin Wallström, Lars-Ante Wasara, Magnus Kuhmunen, Pavva Pitja
- Duração: 102 minutos
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O mínimo que uma produção pode trazer é o conhecimento sobre algo que não está ao nosso alcance. Com uma narrativa sem muita invenção, Herança Roubada nos fascina através do que se aproxima, da dinâmica do seu contexto, do olhar que lança para um grupo específico que o cinema não está mostrando. Baseado no romance de Ann-Helen Laestadius que se debruça sobre uma situação verídica, o filme captura nossa atenção de cara, ao mostrar um ritual que une crianças a animais de maneira intransferível, e tal representação estará no centro dos eventos que o filme conta. Rapidamente o espectador sai da zona conhecida onde o roteiro conduz a uniformidade da trama, e nos conecta ao campo macro de situações.
Estreia na direção de Elle Márjá Eira, uma cantora e compositora de origem sápmi, uma das tribos nativas da Suécia. O filme é ambientado nessa fronteira invisível que separa um grupo local, que luta pela criação de renas e para manter seu lugar numa vila isolada, e os habitantes colonizados, que estão sem emprego e veem suas perspectivas morrerem. Ambos tem motivos para o desespero: os sápmi tem tido suas propriedades atacadas e seus animais mortos por algum descontente, e os colonizados se incomodam porque o capital sumiu justamente pela quantidade de regras que os arredores das reservas sofrem, ao proteger os nativos; não se pode pescar, por exemplo. Da explosão de sua insatisfação, nasce o universo de onde Herança Roubada faz parte.
A jornada por justiça de Elsa já é conhecida de estruturas tradicionais, então o que se faz ao acrescentar detalhes a essa conjuntura, procura o que há de especial na obra. Ambientado durante o inverno sueco, em ambiente de frio extremo, toneladas de neve, rios congelados e planícies brancas, Herança Roubada nos apresenta a uma cultura pouco divulgada em território latino. Temos nossos indígenas também, mas em nada se assemelham física ou conceitualmente a nós, embora sejam tratados com o mesmo desprezo, explorados da mesma maneira, e terminando assassinados em semelhança. É o mesmo processo pelo qual passa o povo original de qualquer terra, sendo considerado menor e tendo sua História invisibilizada, de muitas maneiras.
Existe então um clima de tensão que Eira estabelece em meio aos acontecimentos locais. A protagonista presenciou a morte de sua rena quando era criança, foi ameaçada pelo autor do crime e silenciou o que viu. Só que esse homem nunca parou de matar os animais, o que vai colocá-la finalmente de frente à uma fúria xenófoba desse símbolo de um avanço econômico que é antiquado. Aos poucos, Herança Roubada coloca Elsa como um alvo fácil, aquele que parece ter o alvo de todos; porque incomoda, porque provoca, porque está atenta ao que querem fingir não existir. Sua presença acaba gerando conflitos entre grupos acomodados com o estado das coisas, sem solução, e quando ela aparece cobrando as autoridades por respostas, o filme avança de seu lugar histórico.
Avança no sentido narrativo, porque sai de um lugar de criar uma mitificação ou exotismo por trás daqueles personagens. Isso não acontece, e suas trajetórias são mostradas sem tratamento incômodo. Essa motivação talvez seja alcançada porque o filme tem outras demandas que não incluem exclusivamente a apresentação de uma cultura. Trata-se de uma produção original Netflix (e que está fazendo um imenso sucesso), que precisa ir além de uma ideia etnográfica das relações humanas, ou mesmo da representação social desse grupo. Herança Roubada não se configura como um filme de gênero, mas sua situação geral também é marcada por outros vieses que não apenas o observacional sobre aquelas pessoas e suas marcas históricas.
O que é interessante em Herança Roubada é como ele trata seu coro grego, muito mais do que os formatos de seus protagonistas. A forma como tais personagens se colocam em evidência, a que voz eles estão aludindo e o olhar sobre tais eventos é sempre sui generis, as abordagens violentas que recaem sobre Elsa tem algo de inusitado, uma construção que é tanto do roteiro quanto da habilidade da direção. Se não existe uma maneira de tornar a experiência de assisti-lo mais marcante do que é, ao menos não se trata de uma espécie descartável de cinema. A forma como algumas imagens são construídas, e alguns códigos de um cinema tenso utilizados aqui, promovem uma estranheza muito bem-vinda.
Um grande momento
O desfecho do lago congelado
Não me empolgou, não passa de razoável.