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Verissimo

Um gênio, o tempo e a vida como ela é

(Verissimo , BRA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Angelo Defanti
  • Roteiro: Angelo Defanti, Eduardo Aquino
  • Duração: 87 minutos

Faltam 15 dias para o aniversário de 80 anos de Luis Fernando Verissimo, um dos maiores escritores brasileiros vivos, e a câmera está ligada dentro de sua casa. Não o segue, pois ela está constantemente estática, apenas capturando aquele momento a partir do ângulo onde foi posicionada. Das conclusões na qual chegamos a partir dessas escolhas, as reflexões que são ampliadas para a produção, é dessa minúcia que nasce o melhor a respeito de Verissimo, documentário em competição na edição de 2024 do Festival É Tudo Verdade. Apesar da definição, a estrutura que é lida a respeito dessas escolhas remetem a um trabalho ficcional, a partir do momento onde não há interação estreita entre o biografado e a obra em si. 

Não é um dispositivo inédito nem mesmo no documentário, mas o que é capturado à revelia da obra é algo de impacto emocional e discursivo inegável. Talvez por Angelo Defanti ser tão entusiasta de Verissimo (essa é a sua quarta obra que atravessa o escritor, que inclui o longa O Clube dos Anjos), ele tenha tido a sensibilidade de compreender o quadro maior, para além do olhar de um profissional contratado. O que vemos na superfície é uma maneira simbólica de tentativa de resgate a um período da vida onde as perdas serão em maior escala que os ganhos, sem qualquer tipo de condenação prévia. Verissimo não se conforma em nos apresentar a rotina daquele núcleo, mas precisa da aderência do espectador para mergulhar em normalidade extrema. 

A desconfiguração aquela aparência está nas entrelinhas, que não tenta disfarçar controle. É a casa de um casal de idosos, que frequentemente recebe visitas; todas elas são íntimas do local, logo estão livres de qualquer obrigação. Isso significa algo o mais próximo de uma vida real possível – embora, por convicção, eu não acredite em ‘vida real’ quando a câmera é acionada. Mas não há como negar que a performance ali, se existe, tenta revelar outra ordem de coisas que não as habituais de um filme narrativo tradicional. A escolha de planos indica exatamente quais são os interesses de Verissimo: se misturar àquele dia a dia nas últimas duas semanas antes da festa octogenária, e escrutinar o detalhamento sobre as relações sociais não apenas dentro da casa de Luis Fernando Verissimo. 

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O que se segue é a forma como é desenhada a relação de uma pessoa idosa em seu habitat, dos outros com ela e uma realidade comum a qualquer espaço onde seja apresentada essa dinâmica. Poderíamos chamar de formalidade do afeto, as convenções esperadas entre quem se ama, e que se apresentam exatamente a partir de uma leitura burocrática das relações. Não há espaço para dúvida a respeito do carinho nutrido pelos personagens, mas também existe o abismo que se abre entre gerações de maneira natural. O discurso a respeito da aversão ao celular é a deixa para que percebamos porque Verissimo é sempre apresentado a parte do plano, raramente no centro dele; sua relação é com as coisas, muito mais do que com as pessoas. Isso é justificado pela introspecção natural do protagonista? Sim, mas não somente. 

De maneira devastadora, Verissimo acompanha uma nova configuração de mundo para o indivíduo, que não o inclui. A direção de arte da casa do escritor é muito eloquente, parece falar com sua tamanha presença. Aos poucos, o borrão entre o que é o protagonista e o que são as coisas ao seu redor, vai ficando cada vez menos evidente. Assim como a gradual transformação em objeto, o trabalho de som do filme é impecável no que tenta reproduzir. A cacofonia de um momento se mistura à evidência de um outro, revelando um processo auditivo cada vez menos presente. Quando olhamos para o quadro geral do que Defanti apresenta, o resultado não é algo que nos acalente de alguma forma, pelo contrário, o sentimento de solidão, desproteção e esquecimento se sobrepõe ao bem querer mostrado. 

Da maneira menos esperada possível, Defanti transforma a história de Verissimo em algo comum a todas as famílias. Isso nos aproxima de um homem na condição de gênio, cujo pedestal é retirado até que ele desça até nós de muitas formas. Enquanto assiste futebol, as homenagens para si, enquanto se perde na frente de Silvio Santos como qualquer um, esse homem, acima da maestria, é um homem. Velho. E enquanto tal, a sociedade se mostra da forma como ela é, em qualquer encarnação, seja parente, amigo ou um estranho na rua. Quando enfim sai das dependências daquela casa, Verissimo ganha o fôlego que poderia vir a faltar, mas nunca deixa de mostrar coerência – em autógrafos, entrevistas ou encontros banais, a idade chega para todos – e as consequências dela são uniformes. 

De alguma maneira, Defanti se aproxima aqui da obra pelo qual Maite Alberdi vem sendo ovacionada com justiça – e indicada ao Oscar por Agente Duplo e A Memória Infinita – ao tentar invadir o olhar sobre um tempo que passou, mas ainda existe. Verissimo não consegue fugir à melancolia, ela salta da tela, mas também funciona como uma plataforma de ampliação do que podemos esperar desse diretor, que revela a maturidade para voos ainda mais ousados. Defanti transforma um ambiente real em uma casa assombrada pelo hoje.

Um grande momento

O autógrafo para as crianças

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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