- Gênero: Drama, Suspense
- Roteiro: Rafael Ribeiro Gontijo
- Canal: Rafael Ribeiro Gontijo
- Elenco: Eduardo Görck, Letícia Coralina, Sandra Bernardes, Gaivota Naves, Gabriel Pogó
- Duração: 18 minutos
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O curta-metragem serve muito bem à ideia de estudo de personagem. Quando bem administrado, tudo o que um filme pode compreender sobre alguém tem resumo fácil através da simples observação de sua rotina, e de campos que parecem minúsculos à primeira vista, mas que englobam muito do que é necessário para capturar do outro. Todo esse preâmbulo para dizer que, uma semana depois de assistir Inflamável, o impacto ainda não foi inteiramente assimilado. Porque todo esse campo de ideias para encampar junto a um modelo narrativo vem à baixo quando se tem à disposição a conjunção dos astros que promovem uma equação exata. O resultado é assustador, quase como um filme de terror da vida mundana, se o mundano não estivesse em literal ao nosso lado – aí o horror é amplificado até limites desconhecidos.
O que nasce da observação da vida deste homem inclusive é a normalidade da mesma, e nosso espanto diante das descobertas do que se esconde (ou não) atrás do que é banal ali. Carlos é um homem que se recupera de um período longe da sociedade, que ele não escolheu passar; acaba de conhecer Lúcia, e não pretende abrir para ela detalhes que podem minar a nova relação. Esse texto tenta deixar menos explícito o que no filme é estampado, mas em um curta metragem, qualquer informação é um spoiler que drena impacto. Ainda mais quando as engrenagens montadas pelo diretor Rafael Ribeiro Gontijo sugerem que estamos à espreita dos acontecimentos, descobrindo paulatinamente o discurso de seu personagem, e tentando evoluir sob sua percepção, esteja ela indo na direção que for.
Acima de tudo, é lindo acompanhar uma narrativa essencialmente política, mas nunca espraiada até as raias do explícito, se tornar tão absorvente e coerente. Inflamável é um filme do nosso tempo da maneira mais ampla que poderíamos observar, e o microscópio que o filme injeta no seu personagem central, é também uma forma de observar um processo do qual ainda estamos enlutados, cuja ressaca ainda é evidente. Carlos provocou os eventos do qual agora é refém, mas nada está em cima da mesa da existência; sua catarse acontece em silêncio, quando ninguém está olhando ou ouvindo. Ou, mais precisamente, quando ninguém está julgando, como convém a todos os bons covardes que conhecemos. Por trás da armadura, todos somos cidadãos de bem – resta saber como trabalhar para conseguir uma tal de felicidade particular.
No caminho para tentar se livrar dos fantasmas auto-produzidos, Carlos protagoniza cenas que Gontijo proporciona para que consigamos adentrar sua confusão mental, que é exposta na ação. Nesse movimento, o diretor não é o único autor da dança em questão; Eduardo Görck, o cavalo utilizado para externalizar os sentimentos de um homem à beira da implosão, é o parceiro ideal. É impossível que o espectador saia da sessão de Inflamável sem absorver os dados impressos na tela, seja pelo plano ou pela materialização do ator, que em construção febril, nos aproxima de figuras nefastas, mas que são muito próximas. De alguma maneira muito ambígua, ficamos não apenas tocados por aquela pele e sensações ruins, mas também de algo que, em algum momento, foi considerado humanidade.
Tudo em Görck parece apresentado para o choque, do que é mostrado em seu psicológico, mas também no que concerne o físico. Se o esforço do ator ou as ferramentas do autor, Carlos parece um ser mutante a cada vez que nos aproximamos, tanto no trato com o alheio quanto no que revela quando está sozinho. Em seu visual, tudo parece seguir uma lógica também do cinema de gênero, onde acompanhamos o Monstro a surgir, gradativamente, e às vezes mais aparente que em outros momentos. Trata-se, talvez, de uma ousadia ao tentar aproximar-se de um caso como no clássico de Robert Louis Stevenson, porque Jekyll e Hyde, aqui, habitam sempre o mesmo corpo sem precisar se esconder suas versões. Estão na transformação dos olhos, do rosto, do corpo, mas isso tudo plausível com as manchetes dos telejornais e as verdades da atualidade. Os monstros caminham entre nós.
Os trabalhos de Liss Fernandez na fotografia e de Marisa Mendonça na montagem tornam o material inacreditável, porque a cada novo avanço da duração, parece sermos assombrados por novas camadas de sombras e luzes, e isso não está somente na entrega de Görck. O ritmo que Mendonça consegue, os cortes secos, a velocidade com que acompanhamos essas imagens, tratam de evidenciar ainda mais o olhar do público, que é convidado continuamente a adentrar o horror, e experimentar o campo de sentimentos abissais que percorrem o personagem. Não é uma experiência pouco incômoda, mas nada do que ela proporciona se compara ao personagem real que esse protagonista representa. Tão vivo e tão possível, tão capaz do horror diário e ao mesmo tempo tão dissociado da sanidade, Carlos está ao alcance de um toque.
Um grande momento
A gasolina (mas poderia ser ‘a piscina’, ‘o plano final’, ‘o beco’…)
[36º Kinoforum – Festival Internacional de Curtas de São Paulo]


