- Gênero: Drama
- Direção: Tiago Minamisawa
- Roteiro: Tiago Minamisawa
- Duração: 14 minutos
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A animação brasileira ainda encontra muitos pontos de dificuldade, principalmente no âmbito da produção. São anos e anos gastos em um desenvolvimento, para passar a um novo parâmetro onde mais anos e anos igualmente seja a demora da realização. Kabuki, por exemplo, tem uma vida prévia de pelo menos 10 anos, tempo que o diretor Tiago Minamisawa (do gigantesco Sangro) levou para lançar uma obra das mais poderosas, por trás da delicadeza do que é filmado. Todo o esforço está impresso na tela através da ancestralidade do artista, que busca na raiz de quem veio antes dele, um gatilho lógico para falar das pessoas assassinadas por descobrirem pertencentes ao sexo oposto de seu nascimento.
A base de Kabuki é a do milenar teatro japonês, que só aceitava homens em cima do palco, ainda que para interpretar mulheres. Animado e sem diálogos, o filme desconhece o conceito de concessão, e segue dinamitando as nossas percepções acerca de uma animação cuja coragem advém de inúmeras colocações. Além do que já está citado e implícito, a porção LGBTQIAPN+ é a metáfora ideal para amplificar a voz dos artistas daquela seara, mas aqui ele lida com a perseguição sistemática que sofremos recentemente, somente por lidar com a arte. O campo de análise aqui é mais subjetivo, porém é de fácil assimilação que estamos falando de morte, mais uma vez, como um tema recorrente que nos persegue e oprime – ainda que necessário.
O que impressiona em Kabuki é a capacidade de seu realizador, para além do que está comunicando (e isso é uma fatia enorme do projeto), fazê-lo com grau de excepcionalidade dentro do que está proposto. A animação stop-motion não somente é uma prática de grau de complexidade inimaginável, como também é uma arte que nos requer o tempo de inúmeros projetos. Ao contrário de sua obra anterior, que lidava também com uma dose de experimentação, esse filme mostra uma história linear sendo contada, ou seja, precisamos lidar com uma excelência que também venha da continuidade, do ritmo e de alguma linearidade, sem deixar de comunicar seus intentos. Esteticamente, poucas coisas se assemelharão ao que está disposto aqui.
Apesar disso ser uma discussão muito propícia ao tempo real da ação (e nem pertencer tanto assim à nossa contemporaneidade, vide Adeus, Minha Concubina), Kabuki tem interesse em conectar isso ao hoje. Ou será nossa própria mensagem subliminar do tempo, que nos joga em uma conexão premente atual, a respeito da liberdade do corpo e da identidade de gênero. A partir dessa ideia de premissa, é mais fácil para Minamisawa incorporar elementos que estão na pauta do dia, mas sem jamais fazer um filme panfletário, ou que busque nas soluções sociais um palco para encampar uma narrativa de qualquer ordem. Estamos diante de uma animação, onde tudo é tratado pela sutileza dos quadros.
Para além da profunda beleza estética que já podemos identificar como uma marca do realizador, a obra mostra uma inteligência narrativa que também faz parte de uma mecânica que ele já demonstrou anteriormente conseguir manusear. Ou seja, o acompanhamento que temos do diretor não está restrito a um lugar exclusivo; em Kabuki, existe um estudo por séculos de história, e ainda mais abrangente por séculos de inquietação. Estamos falando de uma demarcação emocional a respeito de quem está morrendo em maior quantidade na sigla LGBTQIAPN+, e de como tais perdas contribuem para a manutenção de um preconceito milenar. Nessas duas colocações, existe uma tentativa de reformular a História e nos observarmos como eternas fênix, ainda que seja pouco.
Renascer de todas as derrotas, priorizar-se continuamente a quem nos odeia, estar eternamente superior aos ataques, às surras (metafóricas ou não), nos eleva em cada capítulo. O que Kabuki talvez mostre é que temos de domar, em particular, a todo e qualquer manifestação de ódio, e nos provar todos os dias. É com garra e com luta, é com sabedoria e estudo, que vamos vencer cada etapa. Esse monte de palavras é pra tentar alcançar a beleza maior de uma obra que, ela mesma entende, transcende palavras. Porque estou mesmo escrevendo sobre uma obra de tamanha magnitude? Curtas metragens precisam ser conhecidos, precisam ser estudados, precisam ser vistos. Kabuki é maior que qualquer texto.
Um grande momento
A transição entre a animação tradicional e o stop motion