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Juntos

Desamor nos tempos de covid

(Together, GBR, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Stephen Daldry
  • Roteiro: Dennis Kelly
  • Elenco: James McAvoy, Sharon Horgan, Samuel Logan
  • Duração: 92 minutos

Até agora, poucos longas foram produzidos sobre a experiência da pandemia de covid-19, que ainda não terminou porém já estamos há mais de 2 anos e meio nessa vivência nada apática junto a um vírus assassino – do qual, felizmente, uma vacina já foi encontrada. No Brasil, uma pérola como Seguindo Todos os Protocolos já foi lançada; no Reino Unido, teve esse Juntos, estreia de hoje do Telecine que, mal disfarçado da típica comédia romântica britânica, está falando diretamente sobre o assunto. Com direito a passagens que vão de uma dor muito explícita e profunda com a catarse posterior de precisar continuar vivendo a despeito do horror que vivemos, o filme é, em muitas passagens, uma exposição muito frontal a um momento que ainda não cessou. 

Acompanhamos em cena apenas três personagens, um casal e seu filho muito pequeno, Artie – ou Arthur, depende de quem o chama, o pai ou a mãe. Os adultos estão em profundo desalento por serem obrigados pela quarentena a permanecer sob o mesmo teto, quando preferiam continuar nutrindo o ódio que sentem um pelo outro bem de longe. Como já dito no parágrafo anterior, trata-se de uma comédia romântica, e britânica; isso significa que as piadas ácidas e inteligentes estão a postos. E que por trás de tanto rancor acumulado, de tantas queixas de parte a parte e das agressões que aparecerão ao longo de um ano, a brasa ainda não apagou. Nesse sentido, a transgressão que o roteiro de Dennis Kelly apresenta é, no mínimo, adorável para a narrativa. 

A grande maioria das histórias de amor começam com um casal desconhecido, que se apaixona, por algum motivo qualquer se separa, e por fim a explosão da paixão os une “para sempre”. A grande maioria das histórias de desamor segue um casal que só terá paz quando não estiver mais junto, e assim então procurar a felicidade cada um à sua maneira. Juntos subverte a brincadeira, acompanhando um casal que, até já se amou, mas isso ficou muito para trás; hoje, sobram o desprezo e o rancor. Ao longo do primeiro ano da pandemia, eles vão desconstruir tudo que restou de ruim e tornar a perceber o que saltou aos olhos, um dia. As compatibilidades voltam a fazer sentido, o carinho chega no momento de desespero, o casal então parece possível, mais uma vez. Mas há retorno depois de tanta tragédia assistida e declarada, ao redor e entre eles? 

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Uma decisão arriscada de Juntos é fazer o casal protagonista quebrar a quarta parede durante toda a produção, se dirigindo ao público e convidando o mesmo a participar de suas discussões e relatos. O risco advinha principalmente pelo fato de que esse recurso tem cansado o espectador muito mais do que conectado, o que não é necessariamente o meu caso. Acho, aqui particularmente, que o filme tenta mesmo nos conectar, narrativa e público, a um sentimento maior de unir as visões a respeito de algo que, literalmente, estamos todos vivendo, de alguma forma. Com isso, também compartilhar as sensações em relação ao processo de desgaste de uma relação, que passa por inúmeras bifurcações de sentimentos ao longo de sua duração. 

Rodado em apenas 10 dias, Juntos é dirigido pelo espantoso Stephen Daldry. Não tem outra palavra para definir a trajetória artística desse britânico de 62 anos. Com seis filmes no currículo, foi indicado ao Oscar pelos 4 primeiros (Billy Elliot, As Horas, O Leitor e Tão Forte e Tão Perto); de quatro indicações ao Tony de direção, ganhou três; também temos dois Emmys por The Crown; alguns BAFTA’s também estão na conta. Talvez lhe falte vencer o Oscar, mas sua carreira está bem longe de sequer parecer derrotada. Neste seu último filme, alia suas melhores características teatrais às cinematográficas, indo com segurança por planos sequência entre dois atores na cozinha de sua casa, nunca deixando o máximo de dinamismo escapar. A capacidade de Daldry aqui é fundir seus dois mundos de sucesso em algo absolutamente orgânico e muito sedutor. 

O texto, leve e mordaz ao mesmo tempo, nunca deixa de ser também sobre um colapso planetário que uniu mais uma vez um casal que não se deseja mais. Embora a sua história particular seja a base do que vemos, é a covid seu tema de conflito mais premente. Através de sua história, identificamos situações tão próximas (o debate sobre os processos funerais é aliviante, para alguém que não tem os hábitos de estadunidenses e britânicos) quanto críveis. A dor construída em cena é transmitida com muita coragem por James McAvoy e Sharon Horgan, confortáveis em suas personificações desse casal quase descasado. Dosando muito bem todas as camadas de cada um, sem deixar de mostrar os sentimentos que os fazem particulares, mas também os que os identificam como sobreviventes. 

Tudo em Juntos transmite aquela doçura rara de se encontrar em obras menos cuidadosas, que nunca deixam de impactar pelo que parece de tão simples construção, mas que sabemos demandar grande esforço de criação. Além de ser um alívio perceber o quão lugar comum é a nossa revolta com o assassínio em massa que governos e países promoveram com sua população, buscando apenas a covardia descarada. Entre muitos grandes recortes do filme, o desabafo político de Horgan frente ao máximo de horror que se abateu em sua família é uma prova de que comédias românticas não precisam ser alienadas, ou alienantes. E nem por ser dessa forma ela tenderia a não ser agridoce, ou menos deliciosa na criação de seu imbróglio amoroso. 

Um grande momento
Berinjelas 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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