Crítica | Catálogo

Luz nos Trópicos

A História tragada pela lente

(Luz nos Trópicos , BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Paula Gaitán
  • Roteiro: Paula Gaitán
  • Elenco: Begê Muniz, Carloto Cotta, Clara Choveaux, Arrigo Barnabé, Kanu Kuikuro, Maíra Senise, Daniel Passi, Erik Martíncues, John Scott-Richardson
  • Duração: 260 minutos

Os primeiros planos de Luz nos Trópicos, estreia nos cinemas de um dos filmes mais consagrados da diretora Paula Gaitán, sugerem que viemos do vermelho-sangue. Tudo tingido de um rubro muito vivo, os animais, as paisagens, o rosto, o céu. Dessa maneira, fica posta nossa origem desde as invasões das Américas – massacre contínuo, cultural, físico, psicológico, sociológico. O que nos é constantemente roubado, seja há 50 anos atrás ou hoje pela influência predatória dos novos colonizadores, está em duplo sentido na tela, tanto implícito quanto explícito. Nesse compêndio de imagens que dura quase 260 minutos, estamos debruçados sobre os povos originários e sobre quem os legou morte. Não é pouco confortável se embrenhar por essas imagens, e nem deveria ser mesmo. 

Gaitán nunca abriu mão das ambições que permeavam sua obra, mesmo quando busca um escopo mais pessoal, como em O Canto das Amapolas; com Luz nos Trópicos não é apenas a duração estendida só suplantada por Lav Diaz e Wang Bing que lhe coloca em outro degrau. Sua opção em retratar à sua maneira como se deram os rumos da colonização abaixo do Equador do continente americano, e em como isso afeta a construção da sociedade estadunidense tantos séculos depois, é de uma proporcionalidade e coragem pouco vista nos tempos de hoje. Tem a ver com a intenção, mas ainda mais com a positiva audácia de não se dobrar ao mercado, a um público domesticado ou a uma aceitação livre sobre como nossas obras devem (ou não) se comunicar, e com que plateia. 

Parece um discurso anti-análise, que não se preocupa com o cerne da obra, mas está intrínseco ao que é Luz nos Trópicos seu resultado dentro do contexto de mercado, e não apenas do que é, simplesmente. E o que é Luz nos Trópicos? É um marco de ousadia para demarcar de maneira não linear e não concreta blocos de eventos que definem nossa construção enquanto sociedade. Tem esse jovem homem de origem indígena que, em um transe metafísico ao percorrer um rio margeando Nova York, se desloca para o leito do Amazonas em igual suspensão de sentidos. É Gaitán nos convidando para que saiamos do esperado para adentrar o imersivo mais radical, ao sorver todo o som local da mata amazônica com cada vez mais veemência e esplendor, para que percebamos que nada mais está em cena, mas tratando de um mergulho sensorial por quem nos precedeu. 

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No caminho do filme, no entanto, outras camadas de coragem vão surgindo, para além da duração e da metragem temporal narrativa. É quando, por exemplo, o filme percebe a perda da identidade indígena motivada pela influência exterior, quando a luz do fogo é substituída por feixes de pequenas lanternas nas mãos das crianças; é o futuro sendo elaborado sem pés na História. Falar sobre o nascimento da nossa sociedade enquanto paraleliza a dissolução de quem nos formou por nós mesmos é montar um moto perpétuo do apocalipse originário, que representa o tanto de mal está inserido ao que fazemos, mesmo sem a consciência de tal. Uma das forças de Luz nos Trópicos é nunca deixar de provocar com a especulação dos rumos que acompanha, seja dos nossos invasores ou de nossos antepassados, que, conectados, temos um pouco de cada. 

A chegada dos colonizadores à narrativa é uma exposição do vazio, gradativo. Verbalizado e também visto, um grupo de origem múltipla (franceses, portugueses e britânicos) desempenham um jogo de múltiplas amostragens do nada – banho, lavagem de roupa, declamação de poemas, e exploração do espaço geográfico delimitam suas ações, e fascinam como um todo. Nesse momento, Gaitán tende a explorar a interação do Homem com a terra que ele considera descoberta e sua posterior aglutinação com o que encontra. Luz nos Trópicos ainda possibilita um olhar para a relação entre aquelas figuras e outras representações históricas, como a da criação do mundo segundo a visão cristã. Como naquele momento o cristianismo era ainda a religião predominante, uma encenação livre do momento onde Adão cai em direção ao pecado motivado por Eva é tanto uma zombaria sofisticada quanto mais um apontamento provocativo de sua autora. Auto considerados maiores que qualquer povo escravizado, nada mais branco que se cristalizar como os primeiros moradores de alguma parte da Terra. 

O trabalho de Gaitán atrás das câmeras reafirma sua maturidade inesgotável como realizadora, sua consciência do espaço-campo a ser explorado pela câmera, e sua apropriação da imagem como principal vetor da fabulação, como um diferencial justamente ao cinema multi-industrializado vindo dos colonizadores, ainda eles. Luz nos Trópicos não envolve o espectador em uma cerimônia de congraçamento do plano apenas para motivar devaneio estético, mas ela quer sim espraiar sua narrativa sem o auxílio do verbo. A possessão gradual da personagem de Clara Choveaux, por exemplo, é todo expresso estritamente pelo quadro, sem ampliação de diálogos para permear a ação; essa é um apontamento de toda a obra, que nos leva a ligar outros canais de percepção de roteiro, ao invés de se prender ao que é tradição do esquema clássico-narrativo. 

Em uma espécie de terceiro ato também desligado de marcação, Luz nos Trópicos esgarça suas ideias para além do que talvez precisasse ser delineado. Fincando os pés da volta de um dos protagonistas do transe citado anteriormente, acompanhamos a perambulação do tipo por ruas e vivências ‘novaiorquinas’, e somente ali é percebido algum desgaste no que tem pra contar. Ainda assim, esse reencontro do que é herança contemporânea dos processos iniciados cinco décadas antes revela um cuidado com o reflexo no hoje de colonizadores e colonizados. Demonstra que os papéis hoje se invertem e confundem vez por outra, com os olhos famintos do estrangeiro sobre o que é esse corpo dissidente. É um desfecho que igualmente desliza na nossa direção acerca de um tempo que só a própria obra domina, e permanece sem pressa de dizer que a exploração do outro é uma raiz muito forte do humano, que estará eternamente na ânsia de olhar para algo que não lhe pertence e tentar domá-lo, ainda que seja uma simples reprodução de nossa própria figura ou o que o Cinema consegue capturar, para mostrar o que é seu. 

Um grande momento

O rap da caverna

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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