Crítica | CinemaDestaque

Golda: A Mulher de uma Nação

Criatura à serviço

(Golda , EUA, RUN, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Guy Nattiv
  • Roteiro: Nicholas Martin
  • Elenco: Helen Mirren, Camille Cottin, Liev Schreiber, Lior Ashkenazi, Rami Heuberger, Dvir Benedek, Dominic Mafham, Ellie Piercy, Ohad Knoller
  • Duração: 96 minutos

Golda: A Mulher de uma Nação nos assusta em sua abertura – ao menos em partes, afinal, sabemos ao que esse filme, em tese, se prestaria. Uma montagem que une mapas, datas e momentos históricos, com imagens reais, dos eventos políticos envolvendo Israel durante 30 anos, montam um painel bem desanimador do ponto de vista estético. É no mínimo desestimulante assistir esse momento e antever o filme de sempre vindo na nossa direção, aquela mesma burocracia de biografia de figura político-histórica, que se imagina capaz de produzir troféus dourados como vemos ano sim, ano também. Ainda bem que a expectativa vai ao pé, porque a partir desse momento, vemos uma guinada interessante que, se não muda nossa impressão em relação às suas intenções finais, ao menos as traveste de uma maneira digna, com uma estrutura menos posada. 

O filme é dirigido por Guy Nattiv, jovem cineasta que ganhou um Oscar de curta metragem há alguns anos, por Skin. Podemos dizer que essa é sua primeira incursão ambiciosa em longa, e o rapaz está afim de mostrar serviço; logo, o que qualquer outro cineasta colocaria no colo como um projeto de encomenda para vender novas indicações para Helen Mirren, ele adiciona verniz. Assim, Golda: A Mulher de uma Nação passa a ser mais do que um veículo para sua estrela, tornando-se algo bem mais digno. As ideias que saem do papel e concebem um conceito gráfico para o projeto não são um simples arremedo para outros fins; há um interesse real em estruturar o projeto como algo além de prêmios, ainda que a presença de Mirren vá além de um chamariz. A ajuda da luz de Jasper Wolff (de Monos e Morte Morte Morte) eleva tudo, do filme ao trabalho dos atores.

Golda Meir foi a primeira ministra de Israel por cinco anos, e esteve à frente do Estado durante um dos seus episódios mais trágicos, conhecido como a Guerra do Yom Kipur, quando tropas do Egito e da Síria atacaram o país, que lutava para ser reconhecido. Foi também uma das criadoras do próprio estado, e se destacou politicamente por mais de 30 anos. O enfoque do espaço de um mês de Golda: A Mulher de uma Nação centraliza a atenção ao mobilizar nosso olhar em busca de aspectos específicos de sua personalidade, mas também escolher esse período para falar dela a blinda de suas muitas “contradições”, moldando uma versão obviamente chapa branca. O filme evita analisar sua contribuição efetiva, e colocar um símbolo de retidão como Mirren em seu corpo é uma amostragem de que não existe muito interesse em investigar seus lados obscuros.

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Existe uma maneira com o qual o roteiro de Nicholas Martin (de Florence) tenta alinhar os pontos de sua protagonista, que é na meticulosidade com que elabora um pensamento particular, que não exatamente será escarafunchado imediatamente. Golda anota todos os números que chegam até ela – de mortos em combate, de soldados em campo, de armamentos enviados, uma forma de manter controle, que se mostra crucial quando ela é interrogada sobre números. Desde sua primeira imagem, quando a câmera apenas radiografa seus olhos, as manchas em sua pele, sua condição estética, Golda: A Mulher de uma Nação tenta dar sua contribuição ao tratamento que sua personagem distinguia ao mundo. E isso é uma forma do filme centralizar sua atriz, mas também tem personalidade. 

Como a forma como o som é utilizado em cena, sempre tem um papel fundamental para a moldura audiovisual pensada como um todo. Tanto nos momentos onde a guerra precisa invadir a imagem, e o trabalho é correspondido através dos ecos nas cenas de tensão, quanto ao invadir o espaço privado da personagem, há uma inflexão positiva nesse lugar. O pesadelo que Golda tem, onde os telefones tocam sem parar e Golda atende a todos, é um momento onde imagem e som caminham em conjunto para entregar uma experiência quase de lisergia, circulando através dos cenários e dela mesma para evocar horror. São pontos muito milimétricos que mudam a forma como enxergamos um produto como Golda: A Mulher de uma Nação, transmutando sua aparência para mostrar-se completo, longe de indicações e motivações espúrias; seu diretor cria uma base para tal. 

E, como era de se esperar, todo o esforço de Nattiv em preencher seu filme com camadas de mise-en-scene para não dar vazão exclusiva a um “produto para prêmios” é recompensado por uma atuação inacreditável de Mirren. A vencedora do Oscar por A Rainha está, aqui, digna de um novo boneco dourado, mergulhada em uma sombra envolta de possibilidades, que ela completa como uma pintora. Com uma maquiagem pesada que complementa seu corpo inteiro, Mirren mais uma vez empresta seu talento a sublinhar um tipo tão inatingível, absorto em tentar compreender o pouco que lhe escapa. “Eu sou política, não um soldado”, e quando a personagem diz isso, nós sentimos que Golda: A Mulher de uma Nação atingiu seu ponto, com as bênçãos de uma das maiores do nosso tempo. 

Um grande momento

Telefones tocam sem parar

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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