Crítica | CinemaDestaque

Manas

O silêncio das inocentes

(Manas , BRA, POR, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Marianna Brennand
  • Roteiro: Marianna Brennand, Felipe Sholl, Antonia Pellegrino, Marcelo Grabowsky, Camila Agustini, Carolina Benevides
  • Elenco: Jamilli Correa, Fátima Macedo, Rômulo Braga, Dira Paes, Samira Eloá, Emily Pantoja, Ingrid Trigueiro, Clébia Souza, Rodrigo Garcia
  • Duração: 96 minutos

Em 2006, o Festival de Gramado foi assolado por um filme que fez a festa entre os premiados; Anjos do Sol levou 7 kikitos, entre eles o de melhor filme. A trama era baseada em conhecidos casos de prostituição infantil no Nordeste do país, que à época estavam em todos os jornais. Quase 20 anos se passaram e Marianna Brennand lança Manas essa semana, depois de acumular duas dezenas de prêmios, incluindo o prêmio principal de uma mostra paralela no Festival de Veneza e o prêmio de melhor filme pela crítica na última Mostra SP. As conversas entre os filmes e as realidades das famílias mostradas existem, mas a sensibilidade que é apresentada no filme de Brennand não acometeu a produção dirigida por Rudi Lagemann. Com muita delicadeza, o filme descortina um recorte do país que em nada foi alterado, nas últimas décadas. 

Com uma carga de beleza que também é uma provocação ao que está sendo mostrado e retratado aqui, ampliando a coragem de sua realizadora a níveis bem altos, Manas não se restringe a gritar seu tema central. Talvez pela delicadeza com que esse recorte é administrado, outras questões estão cedidas ao projeto, umas com mais reverberação e debruçamento, outras com menos. Todas, no entanto, estão no lugar onde deveriam estar, porque promovem um mosaico de ideias que é uma denúncia à violência contra a mulher desde muito cedo, contra a liberdade de ser o que quiser, e contra um entendimento coletivo entre elas, uma espécie de apagamento de sororidade. Essa não é uma moral ao qual o filme queira chegar, mas uma ideia de que isso possa ser realizado pelo universo patriarcal. 

Com a ajuda da luz de Pierre de Kerchove (de Paloma), Brennand em sua estreia na direção de longas de ficção consegue resultados que não são apenas fontes de adjetivos. Porque sua direção tem muito significado para o todo do projeto, como a escolha da ênfase no vermelho, como elemento estético e também dramático; ao interferir na palheta para definir a organização dos planos, autora e fotógrafo partem para a transformação dos elementos de cena, de materiais comuns a veículos de construção de quadros narrativos. Manas redefine seu campo de alcance para que qualquer elogio seja dissociado de sua moldura estética, para conseguir funcionar especialmente na discussão político-comportamental que o filme encampa. 

O papel da figura masculina, por exemplo, parte de uma fantasmagoria mitológica que remete ao mal à espreita, constantemente. São muitas elaborações visuais para garantir que os personagens vividos, entre outros, por Rômulo Braga e Rodrigo Garcia saiam de um aspecto naturalista, no que diz respeito à sua representação gráfica. Não trata-se de elevar o horror do filme a um estado inalcançável, mas justamente de desmistificar o poder exercido pelo masculino, em cena, como algo impossível de resistir. Rapidamente, mesmo as inserções menos violentas desses personagens ganham um contorno trágico, porque estão inseridos pelo roteiro em um lugar onde qualquer coisa – negativa – pode sim acontecer. 

Para um roteiro escrito a 12 mãos (!!!), ou seja, que facilmente revelasse suas fragilidades de falta de coesão, Manas é ainda mais surpreendente. Justamente porque esse não é o caso aqui, onde cada um dos envolvidos deve ter contribuído de maneira efetiva para o campo geral. Na verdade, está sim em jogo um grupo de situações espaçadas que se conectam verdadeiramente, e tudo o que Marciele vai abandonando pelo caminho (sejam personagens ou situações) encontra justificativa na maneira como a personagem vai também perdendo amarras, pudores ou algo parecido com esperança. O que sobra é uma protagonista que continuamente sofre perdas definitivas, e que não são apenas motivadas pela entrada na adolescência; um amadurecimento à fórceps, que é traduzido no filme de maneira implacável, sem deixar de mostrar os estragos emocionais de um processo de violência coletiva. 

Esse equilíbrio, no ato da elaboração das imagens, na significação das mesmas, e na fina confecção dos momentos de horror que serpenteiam o que vemos, e a consciência dos temas que está tratando, colocam Brennand em um lugar raro de alcance. Não é uma declaração apenas do ser feminino que aprimora o apuro de Manas; isso com certeza está no tratamento das imagens e no cuidado preciso com a abordagem. O trabalho se amplifica justamente por essa conexão complexa de elementos que a diretora consegue empreender, entre assombrações contumazes o ser masculino (entre a coragem de apavorar e a covardia de se recolher) e a força feminina nascida do massacre de sua essência. Há de existir uma saída provável, ainda que ela precise ser devorada. 

O elenco de Manas é o último retoque para sua compreensão, e aceitação. De veteranos em momentos especiais, como Dira Paes e Rômulo Braga, passando por Ingrid Trigueiro e Rodrigo Garcia (brilhante desde Tatuagem, aqui impressiona), o protagonismo da estreante Jamilli Correa faz toda a diferença. Em contato constantemente com outras pessoas igualmente inexperientes no cinema – são muitas crianças em cena – o trabalho da atriz é primordial para que a gama de sentimentos pretendida por Brennand salte da tela. Com o corpo de elenco todo coordenado para essa jornada dolorosa onde uma jovem mulher aprende sobre violência na própria pele, Manas abre caminho para uma conversa franca sem apelação, mas de maneira incisiva.

Um grande momento
A caça 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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