Crítica | Outras metragens

Manhã de Domingo

Horror invisível

(Manhã de Domingo, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Ficção
  • Direção: Bruno Ribeiro
  • Roteiro: Tuanny Medeiros, Bruno Ribeiro
  • Elenco: Raquel Paixão, Leonardo Castro
  • Duração: 25 minutos

‘Manhã de Domingo’ chegou atrasado até mim. Esbarrei com ele na última Mostra Tiradentes, após isso ele venceu um Urso de Prata de melhor curta no Festival de Berlim e finalmente nos encontramos, no Olhar de Cinema 2022. Ainda que demorado, chegar até o novo filme de Bruno Ribeiro (de ‘Pele Suja Minha Carne’) é atentar para a emoção da naturalidade do que é visto em tela, em meio aos fantasmas que nos atravessam dia a dia. É do jeito que melhor poderia ser, encontrar dentro dos processos que nos ferem, um passado que justifique todas as violências cometidas antes de nós, e que em nós ainda reverberam, tanto com força quanto com sutileza. Não é por mais discrição, que uma dor deixa de doer. 

Ribeiro tem o lugar de fala que sua pele lhe deu, e utiliza sua vivência para criar uma realidade amplamente reconhecível a qualquer um, ainda que nunca vivida ou acessada. Gabriela, a pianista que é a sua protagonista, está prestes a se apresentar em um evento importante e, receosa do momento, extravasa sua preocupação não apenas nos gestos e movimentos. A jovem vê passar por ela anos e anos de opressão, da perda considerável dos direitos adquiridos, da solidão sentida por quem nunca teve verdadeiramente um apoio em momento crucial. O filme, que também é um compêndio da beleza banal como André Novais Oliveira sabe tão bem conceber, adentra esse terreno de uma criação fabular que pode estar ou não de maneira física, mas que nunca desaparece do psicológico. 

Em cena, Raquel Paixão toca uma peça para piano e depois se deita com Leonardo Castro. O que vemos é tão desconcertante pois tão natural, corpos negros e nus em pleno domínio de suas ferramentas. Uma mulher e um homem, principais retratos de um Brasil bonito e perseguido, sendo apenas um casal absolutamente desprovidos do glamour que a vestimenta nos sugestiona. É puro e simples, a boca de Gabriela desce até o ânus de seu parceiro; nunca é vulgar, e sempre que recordo, a imagem é potente em sua banalidade. Como esse trio (os atores e o diretor) conseguem nos mostrar tanto com tão pouco – vemos paixão, apreensão, vemos carinho, vemos o cuidado entre pessoas que se gostam. Parece pouco, mas nunca é. 

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‘Manhã de Domingo’ se insere em algumas vertentes da cinematografia atual, elencando o melhor de cada uma delas em cena. É um filme pessoal e muito consciente do que utilizar na política de corpos não-hegemônicos do audiovisual, também é um abraço a um cinema de caráter naturalista ao extremo, ao mesmo tempo em que abraça uma sutil cartilha de gênero. Esses elementos unidos não estão dissociados de suas potências, pelo contrário; fazem nascer entre si contornos de uma beleza nova, que acachapa o espectador com seu despojamento, com a luz seca e direta de Wilssa Esser revelando nuances de seus atores e das atmosferas onde estão inseridos. 

É esperada com alguma ansiedade por um longa-metragem dirigido por Ribeiro, e ele eventualmente virá. No entanto, muito mais do que sua duração, o que queremos é esse diretor ainda desperto e pronto para nos surpreender ao nos revelar essas micro cicatrizes de um passado colonial que ainda se arrasta por gerações à frente. O corpo de Gabriela não precisa expor essas feridas que estão muito evidentes na sociedade ainda, nem há a necessidade de agredi-lo; o tormento de um corpo negro está principalmente em suas reações. Quando não há público, ainda assim há uma agressão no gesto de abandonar aquele corpo. A forma como Bruno Ribeiro mostra que a violência e o horror estão até na ausência deles é uma forma de demarcar ainda sua veracidade com o hoje. 

Um grande momento
O casal 

[11º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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