Crítica | Festival

Terceira Guerra Mundial

O homem é o lobo do homem

(جنگ جهانی سوم, IRÃ, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Houman Seyyedi
  • Roteiro: Houman Seyyedi, Arian Vazirdaftari, Azad Jafarian
  • Elenco: Mohsen Tanabandeh, Mahsa Hejazi, Morteza Khanjani, Navid Nosrati, Neda Jebraeili, Hatem Mashmouli
  • Duração: 115 minutos

O cinema iraniano hoje, quem diria, é pop. Lembro da minha infância e juventude, quando coisas como Através das Oliveiras, Filhos do Paraíso e Gabbeh eram considerados supra sumos da densidade, da falta de comunicação com a platéia final, filmes feitos para a crítica especializada apenas, e outras nomenclaturas menos abonadoras. Nos últimos 15 anos, creio, uma nova corrente tem deixado os filmes produzidos no Irã cada vez mais acessíveis, com tramas dinâmicas, muitas vezes tensas e cheias de suspense, mesmo quando discute problemas seríssimos. A Mostra SP desse ano já nos trouxe Além das Paredes, entre muitos títulos de lá, com a capacidade de admiração popular, e agora esse Terceira Guerra Mundial corrobora essa aceitação. 

O filme acabou se tornando um óbvio candidato do país para o próximo Oscar de filme internacional tendo em vista que Jafar Panahi é uma pessoa proscrita por lá, e mediante o abraço que a produção recebeu no último Festival de Veneza, ao vencer a mostra paralela Orizzonti. Ao conferir o longa, tudo faz sentido – o prêmio, os aplausos, a escolha e até, caso viesse, um favoritismo da categoria. Estamos diante de um exemplo vivo do porquê o Irã hoje se encontra nesse lugar de compreensão e abrangência de seu poderio. É mais um título que discute situações morais descabidas, desencadeadas por enganos, mentiras e coincidências, que levam a narrativa a uma situação-limite insustentável – no caso aqui, várias. E a conexão com nossa curiosidade é imediata. 

Terceira Guerra Mundial
Cortesia Mostra SP

O ator e diretor Houman Seyyedi está pela sexta vez na segunda função, e esse é seu primeiro reconhecimento amplo. Prestes a completar 42 anos, Seyyedi parece mais um signatário desse cinema iraniano de entendimento menos atmosférico e mais direto, com uma linguagem tão aproximada de um público mais afeito a uma linguagem já estabelecida, quase hollywoodiana. Ao menos, eles criaram um modelo narrativo muito eficaz, que engata ganchos e situações em sequência, monitorando os acontecimentos de maneira eficaz e rápida, sem perder interesse do público. O resultado é essa fórmula quase matemática de entendimento do que se construiu enquanto base, um relógio suíço tamanha a precisão de suas funções e resultados, que em Terceira Guerra Mundial é exemplificado com exatidão. 

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O roteiro escrito a seis mãos também se apresenta em outra característica cara ao cinema iraniano, a metalinguagem. Terceira Guerra Mundial segue Shakib, um faz-tudo que em seu novo bico ajuda na montagem do set de uma produção passada em um campo de concentração da Segunda Grande Guerra. Em questão de dias, Shakib escala uma hierarquia dentro da produção, e de mão de obra barata acaba se tornando protagonista do filme – ninguém mais, ninguém menos que o próprio Adolf Hitler. Daí pra frente, o filme que assistimos passa a ser cada vez mais engolido pelo filme que o filme faz, trançando realidades que pareciam tão distintas, até se tornarem quase indissociáveis impossíveis de alcançar clareza. 

Terceira Guerra Mundial
Cortesia Mostra SP

É tudo tão meticulosamente calculado que uma espécie de harmonia dentro do caos é perdido, e o que vemos é um filme cercear suas liberdades em nome de uma correção artificial. Além disso, o mais grave é perceber que Seyyedi soterra seu protagonista em uma espiral de sofrimento e acontecimentos negativos capazes de afogar uma baleia. A partir da metade de Terceira Guerra Mundial, parece não haver outra escapatória para Shakib que não sofrer, sofrer e sofrer. E sofrer. E quando você acha que o personagem já desceu todos os limites da dor, ele sofre mais um pouco. Quase sádico, as linhas de diálogo incluem “eu sou um ser humano!” por parte de nosso herói, que vai sendo constantemente diminuído a uma espécie de alegoria única e disforme de mazelas incontáveis. 

Fica difícil comprar uma narrativa que se comporta de maneira quase misantropa – e olha que eu sou dos críticos que mais atacam essa perseguição dos meus pares a um cinema chamado de misantropo, por enxergar mais do que miserabilismo, muitas vezes. Mas Terceira Guerra Mundial, a despeito de funcionar muito bem em seus códigos narrativos, de referendar sua estética e construir com exatidão o universo a que se propôs, é sim um trabalho exaustivo de observar uma descida ao inferno, sem direito a interrupção. Com uma interpretação vigorosa de Mohsen Tabanandeh, o filme carece de respiro emocional, nos levando a uma via crúcis que se encerra em um catártico linchamento, difícil de precisar o quão necessário é a quantidade de sucessivas micro tragédias. 

Um grande momento
O incêndio

[46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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