- Gênero: Comédia
- Direção: Alain Resnais
- Roteiro: Jean Gruault, Henri Laborit
- Elenco: Gérard Depardieu, Nicole Garcia, Roger Pierre, Nelly Borgeaud, Pierre Arditi, Gérard Darrieu, Philippe Laudenbach, Marie Dubois
- Duração: 125 minutos
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Alain Resnais foi um cineasta que escondia em sua aparente leveza e simplicidade uma maneira de desabafar sobre as complexidades humanas, a interiorização de suas emoções e dos códigos que regem as relações entre seus personagens. Um filme como Meu Tio da América é quase uma aula sobre como a angústia e as obrigações mundanas podem reger um pequeno quadro de situações e pessoas, transformando suas trajetórias sempre com uma pitada de acaso. Essas casualidades fazem parte da obra do diretor francês, mas aqui elas se unem em três narrativas individuais que acabam por se cruzar para conjugar uma mesma situação.
Não é um olhar para a casualidade, apenas. Ele trata a construção de sua narrativa, através desse andamento comum e superficial, como uma espécie de caos terreno, desde o segundo plano. No primeiro, um coração bate em formato de semáforo; no segundo, inúmeras micro imagens se juntam em mosaico para criar essa espécie de Babel contemporânea, onde suas vozes, anseios e quereres se misturam de tal maneira que não há outra forma de dar a partida que não através dessa mesma aleatoriedade inconstante. Aos poucos, o quadro se esclarece e o volume histérico vai se acalmando, mas partimos de um cenário de excessos.
São três histórias, absolutamente aleatórias, algumas que se contradizem em seus discursos mas que têm uma função clara de explanar a humanidade e as idiossincrasias de três personagens, muito diferentes em tudo. Um homem na faixa dos 55 casado, um segundo chegando na faixa dos 40, e uma moça de pouco mais de 30, com ambições, pretensões e disposições em sociedades apartadas, mas que aos poucos fazem sentido ao largo do “grande zoológico humano” que poderia, a princípio, suscitar maiores questões; é isso e também é mais que isso.
Como deixaria ainda mais claro ao longo de sua carreira, Resnais se interessava pelo discurso e pela construção desse mesmo discurso em imagem, mas não sem subverter os signos do que esperaríamos dessa relação. A imagem e o discurso não estariam necessariamente interligados, como o cinema tradicionalmente nos apresenta a eles. Aqui, o diretor já os trata de maneira independente, porém os conectando e criando a partir daí uma cacofonia proposital amplificada, que ainda assim consegue transmitir uma nova ideia da conexão entre o que pra ele eram artes complementares.
Como a existir um terceiro filme que corre em paralelo aos que estão expostos de maneira explícita, essa obra adjacente é o cinema que o realizador francês fazia nascer das entrelinhas de suas intenções primais. Com alguma frequência, essa narrativa paralela se torna o motivo pelo qual todo aquele imbróglio é alicerçado; seu trio de protagonistas, que se apresenta de maneira indiscriminada enquanto acompanhamos suas rotinas medíocres, é abrilhantado ao elevarmos suas discussões para um grupo mais interconectado, podendo ser por sua própria presença ou por como sua narração reflete comportamentos díspares e resultados igualmente disparatados.
Quando enfim as histórias se entrecruzam e passam a funcionar em bloco único, o diretor de Hiroshima, Mon Amour só ameça transformar seu filme em um produto menos ambicioso, mas suas camadas parecem se fortificar. Por trás de um arranjo tradicional, Resnais passa a explorar ainda mais as contradições de cada um em cena, dessa feita ajustando seus personagens para que suas ações passem a não condizer com o que já conhecemos deles. A intenção não era criar uma dissociação que cause ruído no todo, mas investigar a humanidade recôndita entre Jean, Janine e René, flagrados pelo espectador em situações desconfortáveis, nos provocando para que encontremos suas verdades, escondidas em premeditações e enganos.
Alain Resnais, como já dito, não aparta as pequenezas silenciadas ao exterior de seus personagens, e sim trata de colocar cada um desses caminhos em paralelo ao que há de mais macro, e absolutamente livre de particularidades. Como se dissesse que, para ter o individual, precisamos perceber o coletivo regente de todas as coisas. Isso já está na abertura, e vai se aperfeiçoando no desenrolar dos acontecimentos, onde as coisas parecem, ao mesmo tempo, únicas e banais, prosaicas, sem qualquer especialidade. Ainda que, de uma maneira testemunhal, observamos o caos como parte de um organismo vivo e integrado.
Os lugares do acaso também são uma estratégia que o diretor usa normalmente em sua filmografia para enfatizar a presença dessa força maior que não é comandada pelos elementos presentes, e sim uma situação de marionetes. Aqui, no entanto, essa ideia dos eventos serem maiores que as pessoas, dos efeitos serem mais reverberados que os feitos, dá a Meu Tio da América essa sensação única de que nossa história é tão preciosa quanto a de qualquer outro – ou todas são ou nenhuma o é. E o que faz continuar movendo as engrenagens da História somos cada um de nós, os pequenos e infames seres.
Um grande momento
O reencontro na ilha
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