Direito em Cenas

Direito em Cenas: Ma

a problematização da justiça com as próprias mãos

(Ma, JAP, EUA, 2019)
  • Gênero: Terror
  • Direção: Tate Taylor
  • Roteiro: Scotty Landes
  • Elenco: Octavia Spencer, Diana Silvers, Juliette Lewis, McKaley Miller, Corey Fogelmanis, Gianni Paolo, Dante Brown, Tanyell Waivers, Dominic Burgess, Heather Marie Pate, Tate Taylor
  • Duração: 99 minutos

O longa de suspense e terror psicológico, Ma, dirigido por Tate Taylor, conta a história de quatro adolescentes: Haley (McKaley Miller), Maggie (Diana Silvers), Andy (Corey Fogelmanis) e Chaz (Gianni Paolo), que saem juntos para se divertir após a aula, bebendo e fumando maconha, e contam com a ajuda de Sue Ann (Octavia Spencer) para adquirir as bebidas alcoólicas, já que ainda não têm idade para comprar as bebidas.

A análise jurídica do filme poderia, para não conter spoilers, parar na violação dos direitos de crianças e adolescentes, consumada pela prática de Sue Ann, ao se prontificar a comprar as bebidas alcoólicas para os jovens adolescentes, ou ao disponibilizar sua casa para que eles realizassem suas festas e reuniões regadas a álcool e outras drogas.

Contudo, a intenção do texto é se aprofundar na problematização do discurso daqueles que defendem o retorno, ou a aplicação do Código de Hamurabi nos dias atuais, pregando que “aqui se faz, aqui se paga”, ou o clássico “olho por olho, dente por dente”.

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Para isso, será necessário traçar um paralelo entre esse filme e Doce Vingança, sobre o qual também escrevi a respeito, justamente para evidenciar a problematização da legitimidade da justiça com as próprias mãos.

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Neste sentido, observemos os fatos trazidos nos longas (e já deixo aqui o alerta de spoiler): tal qual em Doce Vingança, Sue Ann é vítima de estupro mediante fraude, na medida em que, levada para o armário do zelador da escola em que estuda, ela pensa estar consumando relações sexuais com a paixão de sua vida, Ben Hawkins (Luke Evans), mas quando sai do armário, não só se depara com a desagradável surpresa de ter toda a escola rindo de sua cara no corredor, como descobre, ainda, que foi levada a erro, e consumou sua relação com um outro aluno.

A partir desse fato, Sue Ann passa a planejar sua vingança que, para atingir as pessoas que lhe magoaram, ultrapassa o abusador e chega aos filhos dele: a vingança de “Ma” (apelido que os adolescentes dão a Sue) consiste em atrair os filhos de todos aqueles que lhe decepcionaram e violaram, para, então, tratá-los de acordo com o que ela acredita ser justo.

Talvez possamos justificar a nossa ausência de empatia com a dor de Sue Ann com o fato de o diretor ter, no começo do filme, traçado uma personagem que, desde sempre, mostrava ter algo de errado em sua personalidade, na medida em que, para além de comprar bebidas alcoólicas às crianças e recebê-las em casa, ainda as persegue digitalmente, enchendo de mensagens e conferindo incessantemente seus perfis em mídias sociais.

Mas, para mim, fica bem óbvio que, ao contrário do que acontece com a vítima de estupro coletivo em Doce Viangança, nós não criamos empatia por Sue Ann por razões mais profundas, que justificamos com “ela é louca”, mas não podemos nos esquecer que ela é uma mulher negra, que foge dos padrões tradicionais de beleza americana, e daí eu pergunto: será que teríamos empatia com a vítima de Doce Vingança se ela fosse uma mulher negra, de meia-idade, sem o corpo perfeito?

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De pronto, meu primeiro ponto surge: o perigo da defesa da justiça com as próprias mãos inicia quando asseguramos que só aqueles indivíduos privilegiados poderiam ter direito à sua “justiça”, já que, historicamente, temos o costume de desacreditar a palavra de minorias, como mulheres negras; homossexuais; pessoas de classe baixa; transexuais etc.

A questão ainda fica mais complicada quando, superado o ponto do racismo estrutural, que não nos permite criar empatia com a protagonista de Ma, assim como criamos com a personagem branca de Doce Vingança, verificamos o discurso de que “a pena que Sue Ann deu a seus algozes foi completamente desproporcional”.

Nem vou entrar, aqui, em detalhes sobre a pena atribuída pela vítima de Doce Vingança — e para a qual muitas pessoas bateram palmas –, mas vou analisar somente a penalização imposta por Sue Ann. Afinal, qual seria o critério para avaliar a proporcionalidade da pena da justiça com as próprias mãos? Até onde uma pessoa pode ir para se sentir vingada?

Voltemos à lei de Talião (o Código de Hamurabi¹), que dizia “olho por olho, dente por dente”, que as pessoas tanto amam repetir, e encontraremos que a pena atribuída aos indivíduos que furtam trigo deveria ser a amputação de sua mão (253º artigo). Daí questiono: há proporcionalidade nessa pena? Determinar que um indivíduo deve perder sua mão e, talvez, sua capacidade de labor, é proporcional ao crime de subtrair para si um bem material?

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Bom, se você defende que sim, vamos ao segundo fato: se o crime cometido fosse o de roubo (hoje, traduzido em nosso Código Penal como “subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência”), a pena segundo o Código de Hamurabi, deveria ser a morte (art. 22°).

Questiono novamente: há proporcionalidade em fazer um indivíduo pagar com a própria vida por um crime contra o patrimônio de outra pessoa? Um bem material vale uma vida?

Indo além, esse mesmo Código, que previa quase expressamente a justiça com as próprias mãos, ditando, somente, como deveria ser conduzida a vingança, ainda não limitava as penas à pessoa do apenado, ou seja, se uma pessoa cometia um crime, poderia ser seu filho quem pagaria com a própria vida, a depender da natureza do crime consumado.

Neste sentido, a você, que defende a justiça com as próprias mãos, e que acha correta a aplicação da vingança cometida em Doce Vingança, eu questiono: o que lhe faz repudiar tanto a conduta de Ma? Seria a hipocrisia argumentativa, enraizada no preconceito racial e no elitismo, ou seria apenas a inabilidade de compreensão da real profundidade daquilo que você defende?

Além de tudo isso, não é demais destacar que, além de permitir penas desumanas, degradantes e violentas, a justiça com a própria mão ainda vem acompanhada de uma carga de subjetividade da qual nunca nos livraremos, afinal, se defendermos que a mulher violada poderá, como bem queira, se vingar contra aquele que a violou, não poderemos, então, dizer para ela até onde são os limites da “justiça”, uma vez que jamais seremos capazes de compreender a dimensão de sua dor, humilhação e seu trauma.

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Daí a conclusão mais óbvia é a de que a permissibilidade da justiça com as próprias mãos é um caminho perigoso para a solução dos problemas, sem falar desumano e ignorante, podendo nos conduzir ao extremo de definir a pena de morte para um indivíduo que subtraia qualquer bem material — independentemente de seu valor financeiro; ou da transmissibilidade da pena, para que toda a família do apenado seja responsabilizada por seus atos.

Por mais difícil e, por vezes, lento e decepcionante que seja, devemos confiar nos Poderes do Estado, que criam as leis, julgam conforme as mesmas e executam suas corretas aplicações, não havendo que se falar em alterações dessas leis para garantir a punição violenta de quem quer que seja, a nosso bel prazer, pois isso nos conduziria a um estado de caos, desordem e desumanidade.

Se queremos, em alguma medida, determinar que deve haver a intranscendência da pena (somente o condenado poderá ser responsável por seus atos); ou a proporcionalidade humana da pena (que deverá ser calculada, seguindo os direitos humanos, de acordo com as particularidades do crime praticado), devemos confiar no Estado para a criação de normas que levem isso em consideração e para sua correta aplicação.

O desespero para que executemos, com nossas próprias mãos, as penas criadas pelo Estado ou por nosso senso de “justiça” pode nos conduzir à legitimação de diversas formas de violência perpetradas no dia-a-dia e, daí, tanto a mulher violada de Doce Vingança será correta por suas atitudes contra seus algozes; quanto Ma será correta por suas atitudes contra os filhos de seus algozes; e qualquer outro indivíduo que se sinta violado será correto se crer que a forma de conseguir “justiça” seria matando quem o feriu.


¹ http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm

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Daniela Strieder

Advogada e ioguim, Daniela está sempre com a cabeça nas nuvens, criando e inventando histórias, mas não deixa de ter os pés na terra. Fã de cinema desde pequenina, tem um fraco por trilhas sonoras.
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