(Miss Marx, ITA, BEL, 2020)
“Fui tremendamente injustiçada”
A frase, proferida pela filha caçula de um dos grandes vultos da história mundial, o teórico máximo do comunismo junto com o companheiro da vida toda, Friedrich Engels, dá o tom de Miss Marx. Eleanor, ou Tussy, seria a filha mais vivaz, voraz e apaixonada pela militância no partido socialista, de Karl Marx. Porém, pelo fato de ser mulher, não foi tão considerada ou respeitada pelos seus pares. No filme de Susanna Nichiarelli, que estreou no último Festival de Veneza, ela é (re)vivida pela atriz britânica Romola Garai.
Apátrida, Karl Marx passou boa parte de sua vida residindo na Inglaterra, na capital londrina. E é ao som do punk rock da banda Downtown Boys que o filme abre, sobrevoando a cidade e apresentando Eleanor e demais membros remanescentes da família Marx no velório do patriarca. Assim como tantos outros filmes de época fazem – estamos olhando para você, Maria Antonieta de Sofia Coppola -, a música diegética é contemporânea para expressar o espírito além-do-seu-tempo da mulher biografada. Ela que, assim como a irmã do meio, viria a se suicidar seja pela perseguição política sofrida, o desalento com a sociedade machista ou as infidelidades maritais.
O relacionamento de Tussy com o anarquista que se torna socialista Edward Aveling é parte destacada em Miss Marx, que opta pelo recorte romancesco para aprofundar os conflitos da personagem título. Afinal, ela é tão dona de si que apenas um homem a tiraria do prumo. Bígamo, Aveling é tóxico e se torna realmente um empecilho na vida militante da Miss Marx engajada em honrar o legado do pai. Como em uma peça teatral ou comédia de costumes, Garai se sai bem nas cenas onde há a quebra da quarta parede e ela discursa para o público/plateia sobre a mais-valia. Por mais que haja muita licença poética envolvida é empolgante constatar que, no final do século XIX, uma mulher buscou compreender, pesquisar, investigar de perto a vida de milhares de homens e mulheres que integravam a classe operária mundial.
O drama de época tem um ritmo um tanto tedioso, mas o carisma de Garai rende bons momentos, como quando descobre que o filho bastardo de Engels na verdade é seu irmão; ou ao se despedir do sobrinho que não pode residir com ela agora que está casada; e ainda as sequências com outros ativistas e intelectuais do Partido Socialista Alemão, também expatriados, com os quais debate questões que ainda hoje nos perturbam: “Porque aqueles que detém a produção e a distribuição da riqueza não são os mais ricos” / “Precisamos extinguir a economia baseada no lucro do contrário não vamos impedir que quanto maior for o acúmulo de capital maior se torne a pobreza de um país”.
A outra irmã é Laura, com quem relembra alguns parcos momentos de atenção paterna dispensada, quando estavam na biblioteca lendo e se provando inteligentes. “Papai dizia que Percy Shelley era um revolucionário. Entendia como poucos o conceito de liberdade. Se não tivesse morrido aos 29 anos, certamente seria integrante do movimento. Por outro lado, Byron, se tivesse vivido mais, certamente seria um reacionário burguês”, relata Tussy. O que é curioso notar nessa fala é que Marx nem considerava o gênio ou a ideologia que escolheria aquela que era esposa do poeta – e que se tornara muito mais célebre – Mary Shelley. Assim como ele sempre subestimou as filhas, todas muito brilhantes mas que se tornaram apenas suas secretárias na Associação Internacional dos Trabalhadores.
Pois com um sopro no narguilê, Eleanor dança, bate a cabeça e agita um pouco da poeira sobre a sua vida e também as das irmãs, ocultada sob a sombra pesada do pai. Miss Marx, ainda que de forma fugaz, sacode e balança algumas estruturas históricas. A grande agitadora e feminista Emma Goldman, contemporânea de Tussy, dizia: “se não posso dançar não é minha revolução”.
Um grande momento
Cantando “A Internacional” na despedida no lago