Crítica | CinemaDestaque

Morra, Amor

O lado cruel da maternidade

(Die My Love, GBR, CAN, EUA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Elenco: ennifer Lawrence, Robert Pattinson, LaKeith Stanfield, Nick Nolte, Sissy Spacek, Gabrielle Rose, Debs Howard, Sarah Lind, Marcus Della Rosa
  • Duração: 119 minutos

A primeira impressão de Morra, Amor é a do casal tóxico perdido no meio do mato, se devorando em nome de um amor “intenso demais”, mas o que Lynne Ramsay está filmando, adaptando Ariana Harwicz, é outra coisa. É o corpo de uma mulher sendo triturado numa realidade que só reconhece a maternidade quando ela cabe no padrão irreal definido por uma sociedade moldada por e para homens. A relação com Jackson é violenta, sim, mas é efeito colateral de uma doença e de uma estrutura inteira que se recusa a enxergar, não a origem de um grande romance amaldiçoado.

Ramsay desloca esse romance para o fundo da cena. O que está em primeiro plano é essa mulher isolada, vendo o próprio desejo e a própria sanidade se esgarçarem enquanto precisa cuidar de um bebê e o marido insiste na fantasia de que uma casa grande e espaço aberto resolvem qualquer problema. Menos interessado em explicar a condição psiquiátrica da mulher, o filme quer transformar sua realidade em imagem, tentar fazer o espectador sentir sua experiência física e mental. Não é algo inédito na filmografia da diretora e nem funciona para todo mundo.

A câmera de Seamus McGarvey cola em Jennifer Lawrence não para registrar uma mulher descontrolada. Na verdade, funciona como extensão da percepção fragmentada de Grace. Os cortes bruscos, os vazios temporais e aquela sensação de que sempre falta um pedaço da cena espelham a impossibilidade de organizar o mundo quando o corpo entra em colapso. Lawrence carrega lembranças de suas próprias crises. E dá para sentir sua instabilidade, em cada oscilação de humor, e no olhar que passa da euforia ao pânico em segundos. Não é uma atuação padrão ou domesticada, é uma interpretação visceral, entregue, suja mesmo, com ataques, nudez desajeitada e gestos que expõem a personagem sem piedade.

Ela se joga no papel, permitindo que Grace seja engraçada, cruel, patética e perigosa. As cenas em que ela “funciona” socialmente são tão inquietantes quanto os surtos mais violentos, porque carregam um descompasso entre gesto e pensamento. Parece que o corpo está ali enquanto a cabeça ficou em outro cômodo da casa. A atriz faz dessa discrepância um motor de tensão e, em vários momentos, seu sorriso assusta mais que seus gritos.

Morra, Amor também recusa a narrativa confortável da mãe que ama demais. A interação de Grace com o personagem de LaKeith Stanfield, existe porque ela precisa sentir que ainda existe para além da função materna, porque há algum lugar onde o corpo responde a algo que não seja choro, fralda e leite vazando. O desejo surge misturado com autodestruição, culpa e violência. Ramsay filma tudo isso com a mesma crueldade da literatura de Harwicz, que sempre tratou mulheres em crise como corpos em chamas.

Apesar de boy lixo, Jackson, vivido por Robert Pattinson, não é vilão absoluto. É um homem enquadrado pela estrutura vigente tentando cumprir o papel de provedor, acreditando que está fazendo tudo certo. Trabalha, organiza a casa, tenta acudir a esposa, mas não tem ferramentas para entender o que está acontecendo. E, no limite, prefere acreditar que tudo é drama, egoísmo ou excesso de paixão. A relação dos dois não é um idílio tóxico, e sim a colisão entre uma mulher adoecida e um homem incapaz de reconhecer essa doença, ambos alimentando a destruição.

Apesar dos muitos momentos de solidão, Ramsay traz Grace para eventos sociais para mostrar que, ainda assim, ela está absolutamente só. Nas festas, nas cenas de dança, no supermercado, tudo soa como não pertencimento. Quando o bebê aparece, é de uma maneira incompleta, embora amorosa. Não há idealização da maternidade, nem grandes momentos de redenção. O filme não explora perigo ao bebê e a violência mais explícita volta-se contra ela mesma. A brutalidade real, porém, está na normalização do sofrimento, na forma como todos ao redor vão naturalizando seu colapso.

Morra, Amor não é um tratado definitivo sobre depressão pós-parto, nem tem a intenção de ser. Como retrato radical de uma subjetividade adoecida, desmonta a leitura simplista de que tudo se resume a uma mulher que passou do ponto por amor. O filme aponta para a violência de uma sociedade que só reconhece a maternidade quando ela vem embrulhada em sacrifício silencioso. Fora desse molde, sobra o desamparo. Ramsay entrega esse desamparo à intensidade de Lawrence. O que sobra não é catarse nem consolo, e fica, principalmente para quem sabe exatamente do que se está falando.

Um grande momento
Da alegria ao desespero no casamento

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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