Numa tarde cinza, chuvosa e de vendaval, estava agendada para às 5 da tarde, entrevista com o curador-chefe da Mostra Panorama, a segunda de maior importância da Berlinale. Lá atrás, quando a Alemanha era um país reacionário, o clash das gerações vivia seu ápice e a cidade de Berlim gozava do status de uma ilha, Manfred von Salzgeber (1943-1994) e Wieland Speck criavam a mostra que seria única no mundo por seu perfil de contracultura. Focados na comunidade LGBT, decerto, ela só poderia ter sido criada na cidade gay que Berlim já tinha em sua essência e que hoje é exacerbada, poderosa e marrenta.
Cinema-Coragem
A lista de filmes audaciosos em tempos de repressão, moral dupla e muitos temas velados, é longa: filmes emblemáticos, desconcertantes, de narrativas audaciosas, como The Watermelon Woman (1997), da diretora nova-iorquina Sheryl Dunye (1997); Paris is Burning (1991), da diretora Jennie Livingston, e recentemente, Greta, do cearense Armando Praça, que teve fulminante estreia em Berlim e depois foi para os cantos mais distantes do mundo. Vale lembrar que o momento em que as Artes Visuais no Brasil foram estranguladas, ter um dinossauro como Marco Nanini fazendo um papel über-corajoso, levou à ira os neopentecostais de plantão, os puritanos da estética e os do baixo clero na Câmara.
2020: Nova roupagem
Novo diretor artístico, nova CEO, numa dobradinha homem e mulher e muitas mudanças em focos temáticos será uma das características da septagésima Berlinale. Ninguém sensato espera que a primeira edição já traga tudo o que Chatrin pretende com o festival. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Berlim não é Locarno. Na seção Panorama, para Michael Stütz também é uma Première. A partir de 2020, ele assumiu sozinho a curadoria da mostra. Claro que existe uma comissão de seleção (seis membros) mas ele dá o veredito. Agora, onipotente, algo que traz responsabilidade e pressão em acertar o tempero para uma versão mais enxuta do Panorama, que exibirá 36 filmes, três deles brasileiros.
No escritório do Panorama, no coração de Potsdamer Platz, centro turístico e de comércio da cidade, conversei durante 40 minutos com Michael, que iniciou há dez anos sua carreira na mostra Panorama, como estagiário.
A mostra Panorama só poderia ter sido criada em Berlim devido à história do festival e da cidade?
De certa forma acho que sim. Claro que o que Salzgeber e Speck criaram, de forma visionária, não foi “somente” para o cinema Queer, mas também para o cinema em geral, o cinema independente, o cinema Art-Haus, mas também tiveram o desafio de encontrar um público para assistir às obras.
O Wieland (Speck) sempre dizia: “Temos que criar um público” em Berlim, para que eles girem o mundo e sejam exibidos em festivais. Era preciso, primeiramente, sensibilizar o público no espaço urbano de Berlim para esses temas, também para uma cultura de debate que exercitamos no cinema ano a ano. A participação do público é muito importante para nós. É importante perceber que o mundo é maior do que ser cinéfilo. Por isso, é importante instigar o público à reflexão, se expressar e talvez discutir e refletir sobre os tempos em que vivemos, o que nos move, de onde viemos e por onde andaremos. Na programação deste ano esse aspecto é muito transparente.
Sobre o foco temático da mostra em 2020
Temos que nos preocupar com temas contemporâneos. O sistema de classes, a migração (não “somente” focado no continente Europeu): temos um filme da Singapura, que trata da imigração de Bangladesh para Singapura. Em Cidade Pássaro, dirigido por Matias Mariani, fala-se de migração.
Pela primeira vez você é curador-chefe da Panorama. Como é isso? Há noites de sono perdido? Há um peso muito grande no seus ombros ocupando essa função?
Eu iniciei como estagiário do Teddy Awards (para filmes de linguagem LGBT) em 2005 e 2006, como assistente do Wieland (Speck). Eu já trabalho há muitos anos aqui na Berlinale, em diversos cargos, nos quais eu pude somar muita experiência e aprender muito. Os anos mais recentes, como programador da mostra e co-curador ajudaram muito também. Antes (de trabalhar na Berlinale), eu fazia o Xposed Queer Film Festival. Lá aprendi muito. Quando você organiza um festival sem dinheiro é você que tem que fazer tudo.
A que ponto o legado de Salzgeber e Wieland é um peso pra você. Você se sente responsável em seguir a linha original?
Eu penso sim (no legado), mas não vejo isso como um fardo. Vejo como potencial, como um privilégio poder dar seguimento a esse legado.
Rolam telefonemas noturnos com membros da comissão de seleção?
(Risos) Existem, sim, e-mails noturnos, trocas, isso é muito importante. Como nós vemos o filme? Às vezes assistimos separados e sentamos para discutir. É importante desvendar uma narrativa para o nosso grupo, como interagimos. É um trabalho de foro muito íntimo.
Qual o tamanho da equipe?
No Panorama somos 15. A comissão de seleção tem seis membros. É muito legal a interação, como nos comunicamos através do filme, como foi espontâneo e orgânico, mas também é preciso estar focado e tomar decisões de forma eficiente, com confiança recíproca.
É também um grande objetivo do nosso trabalho: de um lado, interagir com o público (berlinense e internacional), mas não podemos esquecer que temos um mercado aqui. Tentamos também levar os produtores ou realizadores de festivais ao cinema junto com o público. Dependendo da reação das pessoas na sala de projeção, eles podem se influenciar para comprar os filmes. Da nossa parte, procuramos dar aos filmes uma narrativa de peso, algo que exige muito tempo para alinhavar.
Uma das inesquecíveis frases de Dieter Kosslick é “O cinema nos mostra o que acontece no mundo”. O que os aficionados da mostra Panorama irão ver neste ano?
Está acontecendo muita coisa pelo mundo e isso se reflete nos filmes. Cada diretora e diretor toma posse da temática de uma forma diferente. Temos filmes que nos mostram que precisamos agir, precisamos ter um olhar bem aguçado que precisa de uma reforma social, precisa se movimentar, precisa resistir. Temos um programa que exibe muita luta, muitos temas sérios. Por vez, trata-se de migração política e econômica, os efeitos colaterais do neoliberalismo e do capitalismo, onde o ser humano pode se encontrar bem rapidinho à margem da sociedade. Os filmes mostram que existe uma forma de transformação e inspiração. Eu penso que é importantíssimo para uma comunidade se ver na tela, refletir e discutir num espaço seguro. Se não temos isso, não saímos na rua com a nossa ideia daquilo que queremos ser e não aquilo que a sociedade nos diz.
Uma das primeiras medidas do atual presidente do Brasil foi fechar o Ministério da Cultura. O estrangulamento do setor audiovisual se espelha na programação da mostra Panorama?
Tivemos bastante filmes enviados. Talvez um pouquinho menos do que nos anos anteriores. Há também que se considerar que o nosso programa ficou menor, devido à criação de novas mostras no festival. 36 filmes é um número significativo. Temos três filmes do Brasil neste ano. Eu gostaria de ter mostrado mais. Houve dois ou três filmes dos quais gostei muito, mas considerei que precisávamos “cobrir” outras regiões geográficas. Com três filmes (na mostra Panorama), o Brasil estará muito bem representado, mas eu acho que no próximo ano, o desdobramento da situação do Brasil influenciará e se expressará na oferta de filmes.
Os diretores premiados mantém contato com Berlim?
Às vezes você os encontra em festivais! (risos). Em Cannes eu não encontrei o Armando Praça, diretor de Greta, mas encontrei o Marcelo Gomes (diretor de Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar), aí fizemos uma foto com o cenário da Costa Azul e mandamos para o Armando Praça.
A imprensa berlinense não ficou feliz, para dizer ao mínimo, com a escolha de Jeremy Irons para presidente do Júri Internacional devido a seus comentários homofóbicos e também no contexto do debate #Metoo. Como você percebeu essa insatisfação. Você achou que eles pegaram pesado?
Sobre a nomeação dele eu não tenho influência nenhuma. Eu acho importante que haja o discurso, que ele se proponha a discutir assim como terá que fazê-lo quando estiver presente fisicamente na cidade, também durante as coletivas de imprensa. Eu acho importante que ele se distanciou das declarações (homofóbicas) e ratificou que não fazem mais parte de sua opinião. Decerto que eu li as declarações que ele fez sobre os mais diferentes temas (sobre aborto, casamento homoafetivo). O comentário é infeliz. Não o percebo como vil, mas talvez com o intuito de provocar, assim eu interpretaria. Não me senti pessoalmente atacado. Só tenho propriedade para falar de casamento homoafetivo e não de outros temas.
O que você mais anseia durante os dias do festival?
Eu estou muito ansioso para compartilhar com o público. Alguns cineastas nós já conhecemos, outros tantos nunca estiveram na mostra. É o momento de colher os frutos de um ano de trabalho.
Há uma “linha vermelha” temática que atravessa toda a programação?
No ano passado, tivemos filmes de muita superação. No ano anterior, o foco temático era resistência. Eu acho muito legal porque isso dá esperança…
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