Crítica | Festival

Mulher de…

Desserviço à primeira prova

(Kobieta z..., POL, SUE, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Małgorzata Szumowska, Michał Englert
  • Roteiro: Małgorzata Szumowska, Michał Englert
  • Elenco: Małgorzata Hajewska, Mateusz Wieclawek, Joanna Kulig, Jerzy Bonczak, Anna Tomaszewska
  • Duração: 130 minutos

É de se perguntar se tudo o que se deseja fazer é apto a ser feito, por qualquer pessoa. Será que todo desejo que temos nos cabe realizar, principalmente se não tivermos qualquer conhecimento sobre o assunto? Em cartaz na Mostra SP 2023, Mulher de… é um caso onde a resposta para essa pergunta se mostra óbvia. Boa vontade e boas intenções raramente te dão aval para que uma vontade muito forte se torne um resultado muito adequado. Produção polonesa que ousa falar sobre vivência LGBTQIAPN+ em um lugar onde pouco se avançou sobre questões queer e os direitos conquistados ao redor do mundo, o T da sigla está na narrativa em questão mas não está representado adequadamente. Logo, a pergunta martela durante a sessão: a vontade de comunicar já é válida, mesmo quando não se tem qualquer intimidade com o tema? 

O filme é dirigido e escrito por Małgorzata Szumowska (de Body e Nunca Mais Nevará) e Michał Englert, que não tem qualquer vivência trans para se colocar em um lugar tão delicado quanto o que eles abrem aqui. Há uma clara tentativa de se aproximar de algo como uma leitura da alma transsexual, seus desejos e suas inclinações, e quanto mais Mulher de… se apossa dessa tentativa, mais constrangedor a ideia moral se revela. Nesse sentido, escalar pessoas cis para interpretar personagens em trangeneridade é apenas um dos muitos erros cometidos aqui. Ao tentar se aproximar de um assunto do qual seus autores só tinham o extremo interesse em abordar, nos pegamos pensando porque então não há qualquer pessoa trans em lugares de comando na equipe, ou mesmo com relevância no elenco. 

São erros que podem ser considerados devidamente progressistas, pois que sejam. Não deveria haver mais espaço para esse tipo de erro de representatividade, principalmente vindo de um projeto que tem interesse de parecer tão avançado. Que a situação na Polônia é retrógrada, isso sim é uma denúncia válida e que revela muito dos atos criminosos ainda cometidos contra a sociedade local, tais como a necessidade de processar os próprios pais caso se queira fazer da redesignação sexual uma extensão nos documentos particulares. Ainda assim, isso não deveria ser suficiente para que Mulher de… se colocasse de maneira tão intocável, como se sua boa vontade fosse um salvo-conduto que permitisse que as insanidades mostradas aqui fossem vistas como uma bela atitude. 

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Já seria (e é) muito desserviço que Mulher de… se imagine como um título tão agregador quando tudo não passa de um campo de agressão. Mas além das implicações morais, o filme ainda se mostra cada vez mais desleixado esteticamente, com decisões narrativas muito mal executadas, além de muito descabidas – ou apenas descabidas mesmo. São várias as decisões arbitrárias, a respeito de maquiagem, espaço temporal perdido em proporção, escalação de elenco, alargamento narrativo. O difícil, na verdade, é encontrar os pontos positivos da produção, já que os negativos nem precisam ser procurados. Fotografia cheia de efeitos que estetizam sua mensagem, e transforma tudo em um espetáculo em meio ao horror… pra ver como não precisa de muita labuta para elencar seus equívocos. 

Podemos levantar dois únicos pontos positivos sem qualquer contra indicação, e uma delas é a presença incrível de Joanna Kulig em cena. Protagonista de Guerra Fria, a jovem atriz aqui é a esposa da protagonista e única mulher cis com quem ela se relaciona, e continua demonstrando talento acima da média. O outro ponto é a denúncia que Mulher de… faz das questões políticas polonesas voltadas ao público queer, que precisa sim ser debatido com mais veemência. Nenhum dos dois pontos é justificativa para “trans fake”, prática que ainda parece não ter sido superada pelo audiovisual. É uma pena que ainda precisemos lembrar às pessoas que essa atitude é uma prova de transfobia, considerado um crime em países civilizados; parece que os diretores precisam de aulas tanto quanto os personagens. 

Um grande momento
Quebrando a estátua do querubim

[47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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