Crítica | Festival

Queerpanorama

Role Playing Game

(Queerpanorama, HKG, EUA, CHN, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Jun Li
  • Roteiro: Jun Li
  • Elenco: Jayden Cheung, Erfan Shekarriz, Phillip Smith, Arm Anatphikorn, Sebastian Mahito Soukup, Wang Ko Yuan, Zenni Corbin
  • Duração: 87 minutos

Não é todos os dias que um filme muda de vestuário para nos vestir – e é exatamente esse o truque que Jun Li executa com calma e elegância em Queerpanorama. O protagonista, creditado apenas como I, percorre o corpo de Hong Kong em preto-e-branco, implicando com o reflexo de si mesmo ao tomar o rosto, o nome, a profissão dos amantes que encontra. O exercício de “ser o outro” revela o desejo paradoxal de ser finalmente ele mesmo.

Li estrutura o filme quase como catálogo, em encontros rápidos, corpos que entram e saem, e identidades que se sobrepõem. O sexo não é glamorizado, mas aparece numa frieza de registro, não se esconde, não se exalta. Longos planos estáticos, distância da câmera, enquadramentos que não cortam o desconforto – tudo isso reduz o encontro à condição primária do olhar e da presença. Em cada date, há a sensação de que algo está por explodir, mas o filme resiste ao estardalhaço. A explosão acontece no silêncio que se segue.

A escolha do preto-e-branco aqui não é nostalgia, é um modo de sublinhar a ausência de cor, como se o protagonista, ao copiar outtas vidas, estivesse drenando vida de si mesmo. Visualmente, na deriva de sentimentos, isso ajuda a transmitir a ideia de que, no plural de encontros, há sempre escassez de pertencimento.

E há política incorporada nesse exercício íntimo. Em meio aos encontros de I com homens de diferentes origens, entre refugiados, imigrantes não documentados e turistas, o filme sugere que nem todo corpo tem escolha de identidade, nem todo desejo se traduz em liberdade. Na era dos apps e da performatividade, a repetição da mecânica de assumir o outro para chegar a si acaba sendo alegoria da saturação da visibilidade queer.

E o filme avança bem, mesmo na repetição da fórmula, já que isso é natural. Porém, há momentos de ensaio estético que parecem buscar a automiragem, e transformam o rigor formal em laboratório. A fragmentação de algumas identidades também pode reduzir a ideia à cena e à sensação, impedindo que I se fixe como sujeito ou objeto de uma revolução real. 

Mesmo assim, Queerpanorama acerta porque assume risco. Ele recusa o fechamento e prefere a deriva, aceitando a fricção entre imagem e corpo, entre desejo e memória. É um filme que não oferece mapa, só trilha, e talvez por isso fique. Depois dos créditos, I continua na margem, assim como todos.

Um grande momento
“Eu estou sempre escrevendo”

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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