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Nada Será Como Antes: A Música do Clube da Esquina

Um girassol mineiro

(Nada Será Como Antes: A Música do Clube da Esquina, BRA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Ana Rieper
  • Roteiro: Ana Rieper
  • Elenco: Milton Nascimento, Lô Borges, Marcio Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso, Flávio Venturini
  • Duração: 75 minutos

Lô Borges morava no edifício Levy, na região central de Belo Horizonte, quando um dia, aos 10 anos de idade, desceu para comprar pão para o café da tarde. Aquela deve ter sido a última vez que ele fez aquele caminho antes de ter a vida definitivamente alterada – e não apenas a dele, mas a da História da Música Popular Brasileira também. Nada Será Como Antes: A Música do Clube da Esquina começa exatamente nesse ponto, a virada pontual onde uma criança eternizou seu nome sem ao menos saber do que viria a se tornar, ali. Partindo daquele dia, a diretora Ana Rieper vai muito além de traçar os caminhos do grupo que comporia um dos maiores álbuns da música, ‘Clube da Esquina’, eleito assim no Brasil e no mundo, incluindo a lista da Rolling Stones estrangeira. Pode parecer frugal e modesto para seus integrantes; não é. 

Rieper também não se trata de mais uma cineasta. Há 12 anos, ela estreou em longas com uma pedrada, Vou Rifar Meu Coração, um documentário que não se resumia a “mostrar personagens históricos da canção brega”; a diretora nos levava para o coração de um gênero musical tratado como marginal, e que ela entroniza em panteão imortal através do desdobramento que expande ao universo. Desse trabalho ela se poupou em Nada Será Como Antes: A Música do Clube da Esquina, porque ninguém que vemos dessa vez está abaixo de quem quer que seja – estão todos em um panteão. Eles e o que ele fizeram. Talvez a resposta aqui fosse tentar encapsular, exatamente como ela faz, as histórias que extraem da simplicidade e da pureza daquelas figuras o pó mágico que os torna imortais. 

A cineasta, que também já investigou a vida de Clementina de Jesus, observa mais do que o processo criativo que une aquele grupo, mas principalmente encontra a sofisticação desse mesmo processo, traduzindo eles nos diálogos que são travados, e de sua parte, a concepção gráfica que adorna o material. De posse de material pictórico tão rico, e de ao menos uma pérola audiovisual anterior, A Nova Estrela, curta de 1971 dirigido por André José Adler, Rieper, ao lado dos montadores Pedro Asbeg e André Sampaio, cria a atmosfera necessária para que consigamos adentrar um outro tempo do espírito. É uma jornada que começa embalada pelo verbo, através de Lô, mas que o cinema resgata para si; o resultado é a transformação de Nada Será Como Antes: A Música do Clube da Esquina em documento oficial sobre o que reside por trás do sonho. 

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Para tanto, as fotografias em relevo, como a saltar da tela, criam um mosaico palpável para aqueles meninos. É como se o possível ganhasse força e vida com a presença deles ao vivo, 50 anos depois dos eventos originais, e agora provando sua amizade e ligação. Nada Será Como Antes: A Música do Clube da Esquina mostra que a vida não é feita apenas de encontros, mas da escolha pela permanência. E a diretora costura o tanto de arte possível em cada um deles com a mesma quantidade de uma alma mineira que é inquebrantável, e uniforme aos grandes. Está na humildade coletiva, que passa pelos Borges, por Flávio Venturini, e que observamos também nos meninos da Filmes de Plástico, em Ricardo Alves Jr. e em tantas potências de Minas Gerais ao longo de encontros e histórias. 

Dos comentários a respeito da criação de ‘Para Lennon e McCartney’ até a repercussão de ‘Trem Azul’ em período de ditadura, toda a doçura que é exalado de relatos é o combustível mais que suficiente para moldar cada um em cena, assim como concatenar as ideias de Rieper. É bom que percebamos o quanto a diretora trata sua cinematografia de maneira mutante, sempre arrastando a poesia de suas imagens para a necessidade de cada obra. Em Nada Será Como Antes: A Música do Clube da Esquina, seu trabalho parece mais fácil, assim como também aparenta simples a sofisticação mineira, mas é exatamente desses lugares que são evadidos tanta gana. Isso é traduzido pelo encadeamento sutil entre temas e as paixões tímidas de cada personagem. A eclosão se dá no encontro entre tais letras e sons e vozes e vivências com a pulsação do cinema, que moveu grande parte daqueles encontros e o espelhamento de tais relações. 

Quando Riper reencontra Lô na descida da escadaria do edifício Levy, e finalmente somos apresentados ao histórico momento que o uniu a Milton Nascimento, não é apenas o ciclo perfeito que se faz a um filme, mas da inteligência emocional e rasgo de sensibilidade de, mais uma vez, encontrar o arrebatamento através do casual. Para longe da imensa emoção que é reencontrar Lô (que Rodrigo Oliveira tão bem radiografa em Lô Borges: Toda Essa Água, e é um complemento perfeito ao visto aqui), saber de como sua obsessão por um patinete e como ele deixou sua mãe à espera de um pão que nunca veio são a síntese do Ser Mineiro. Como sempre, o que nasce como acaso, eles dão um jeito de tornar imortal. 

Um grande momento

O fechamento do ciclo, na passagem pela escadaria

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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