Crítica | Festival

Neirud

A fuga da Mulher Gorila

(Neirud, BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Fernanda Faya
  • Roteiro: Fernanda Faya
  • Duração: 70 minutos

Existe um grande trunfo em Neirud: Neirud, sua personagem-título e motivo pelo qual esse filme foi feito. Ela é tia de Fernanda Faya, a diretora que quer e precisa investigar suas origens familiares, ou pelo menos uma fatia obscura, a de como essa mulher se tornou sua tia. Envolta em mistério do início ao fim, Neirud é apresentada gradativamente, e o filme vai beber do fascínio com que ela é descrita. Pouco a pouco, entendemos o porquê essa mulher é tão determinante na vida dos irmãos Fernanda e Felipe, a ponto de seguirem sua jornada de maneira diferentes, sem nunca perdê-la de vista. O espectador sai da sessão tão fascinado quanto os irmãos, e tudo está nela – em sua história, em sua imagem, em sua voz, em quem ela foi, e no tanto que ela representa, e que infelizmente ainda é tão comum. 

Neirud não está mais, mas sua fala sim. E sua imagem, embora fugidia, também irradia em Neirud uma vibração que carrega o filme quando ele não precisa, mas principalmente serve de suporte para quando ele mais carece. O filme é a estreia de Faya na direção de longas, e como tantas estreias, é extremamente pessoal, não apenas porque ela entrega sua família para a apreciação pública, mas porque ela parece com esse filme encontrar frestas nas lacunas familiares normais de todos nós. Encontra muito mais negativas na jornada do que poderia imaginar, mas também consegue descolar essa ideia que parecia muito impregnada na busca por essa mulher, porque tudo leva a crer que ela estava precisava muito mais encontrar a si mesma. 

Ensaio sobre uma busca, principalmente familiar, é um subgênero cada vez mais acessado no cinema brasileiro. Documentários pessoais, onde caminhos particulares acabam por parar no centro da narrativa, são igualmente prolíficos. Neirud é um pouco de cada, o que igualmente passa longe do ineditismo, e esse exercício acaba por gerar filmes que partem para uma investigação muito profunda, em grande parte das vezes. Faya, no entanto, filma tantas negativas, que sentimos que a tal busca de sua autora por vezes levou a lugar algum ao menos para quem o assiste. São muitas certezas de ausências, que acabam por transformar as eventuais descobertas em momentos desconcertantes; afinal, o que está sendo descoberto é de fato uma descoberta, ou apenas algo que sempre esteve ali?

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Ainda que essa escolha narrativa já tenha surtido efeito em muitas obras, sua utilização depende dos artifícios que se cria para disponibilizar ao espectador surpresa, descrença, dúvida. Em Neirud, não é de fácil compra que tudo esteja sendo disponibilizado aos personagens através dessa procura, e sim que elementos de um romance estão nos sendo ofertados. Nenhuma objeção a essa proposição, ao menos não se os personagens não agissem como se tudo fosse sim surpreendentes, e suas reações não aparentem isso. Mais uma vez, a dramaturgia de algo verídico não é uma questão, a não ser quando tudo é descrito sob outro registro; as ligações entre Faya e seu pai, por exemplo, não soam como outra coisa que não artifícios de linguagem, soando um território neutro e sem escolha. Diferente de Amanhã, a ausência do corpo aqui expõe as fragilidades de um todo.

São vários os momentos onde Neirud ficcionaliza seus eventos, imageticamente. Algumas vezes o expediente funciona inclusive no campo do artificialismo, como quando a direção irrompe “defeitos” gráficos na imagem lavada do hoje, comprometendo ao documentário um dado de fantasia. Mas não há uma opção propriamente dita, e tendo muitas encruzilhadas a percorrer, dadas os mergulhos pessoais, Faya percorre esse caminho de buscar o onírico para seus eventos, que deve com certeza ter funcionado para a pessoa Fernanda, mas provavelmente atrapalhou o desenvolvimento do filme da diretora Fernanda. Não é um acidente de percurso, porque os caminhos são interessantes demais, mas a intenção (que é perceptível) é maior do que o resultado.

Sobre todas as coisas paira Neirud, uma personagem muito representativa de inúmeros contextos. Uma mulher preta “ofertada” a uma família branca ainda criança, que escolheu todos os seus destinos seguintes a esse; fez o que quis sempre, e sempre se sentiu suficientemente livre para nunca abrir mão de suas metas, profissionais ou amorosas. Neirud é, simbolicamente, mais um filme sobre o apagamento de alguém, que no fim da vida, precisava da autorização da família para ser transferida de hospital, mesmo “tendo uma família”. Suas fotos desapareceram, sua história não terminou de ser contada por ela, mas ela triunfa quando finalmente está em ação; é um legado que retorna para mostrar o país que ainda discrimina e mata (direta ou indiretamente) suas musas inspiradoras.

Um grande momento
Neirud começa a contar sua história

[12º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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