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Amanhã

Longe do fim

(Amanhã , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Marcos Pimentel
  • Roteiro: Marcos Pimentel
  • Duração: 105 minutos

Primeiro plano: duas crianças interagem, um menino branco e uma menina negra. As brincadeiras infantis se desenvolvem para um jogo de videogame, com um controle disputado. Estamos em 2002. Corta para um segundo momento. Zé Tomás saiu de seu apartamento e vai conhecer a casa de Julia, Cristian e seus irmãos, numa comunidade próxima, na região metropolitana de Belo Horizonte. Muda o teor das brincadeiras, agora vemos o futebol no campo de terra batida, as pipas no alto da laje, mas as crianças continuam tendo a inocência que já não está mais com elas 20 anos depois. Amanhã, o novo filme de Marcos Pimentel (de Os Ossos da Saudade), é traduzido lá pelas tantas da reta final pela Julia de hoje, uma mulher que, assim como seus companheiros de protagonismo, já não guarda mais aquela inocência, e cuja complexidade o filme nem tenta alcançar. De nenhum dos três. 

O projeto de Pimentel é explicitado verbalmente pelo diretor em cena: seu plano era filmar crianças de classes sociais diferentes, separadas por uma barragem na capital mineira, mas que morassem umas de frente para as outras, separadas por uma cidade partida. Talvez ao unir essas crianças por sonhos e metas que seriam (ou não) concretizadas duas décadas depois, poder enfim quadrangular as contradições inerentes ao que as separa. Entre 2002 e 2022, no entanto, muitos Brasis existiram e foram constantemente reerguidos, montados e desmontados, unidos e desunidos por governos de diferentes índoles, com uma pandemia na reta final. O que resta, dentro do que vemos, é mais do que um registro cinematográfico, mas a prova inconteste do estado onde chegamos, dentro da sociedade e de cada indivíduo. 

Em cartaz no É Tudo Verdade, Amanhã nasce como um projeto, se estabelece como outro, e vai se despedaçando enquanto narrativa ao longo do processo; nada ocorre da forma como pensada, em nenhum sentido. Desse jeito, o filme é como um anti-processo, que precisa sobreviver às intempéries que os 20 anos que separam as filmagens impõem às mesmas. Não se trata de uma produção que filmou árvores, ou paredes, e esperou a passagem do tempo incidir sobre elas; pessoas mudam, realidades de um país em eterno conflito ainda mais, e o filme que assistimos é infinitamente diferente do que Pimentel organizou ao longo dos anos. De maneira alguma isso é negativo; estamos diante de um processo vivo, que se reestrutura mesmo diante das impossibilidades a que se confronta. 

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Existe um claro fascínio que vai sendo costurado diante do espectador, de frente para as demolições físicas, emocionais e estruturais das quais Amanhã é refém. Um país se polarizou, e não consegue mais comunicar-se claramente; isso afastou grupos de pessoas, mas propiciou entendimento sobre quem somos nós, mais verdadeiramente. Não há mais dúvidas, e a cena onde Julia percebe que seu irmão Cristian é mais politizado do que ela jamais imaginara é um indício sobre como as coisas tomaram rumos desconcertantes, dos quais temos de encontrar espaço para comunicação menos truncada. A forma como a dinâmica entre esses irmãos e o pequeno forasteiro vai se reconfigurando, mesmo dentro do plano mas igualmente fora, é um demonstrativo da vitalidade que salta da tela; o cinema como um organismo ainda mais vivo do pudéssemos supor. 

Em muitos sentidos, o ser mutante e o país mutante que protagonizam Amanhã dão forma a esse filme que é semeado de uma forma, e colhido de outra, mas que no meio do rumo percebe sua vocação para um outro caminho de comunicação. O encontro sonhado, a delicada narrativa pensada para o roteiro, só seria possível se o Brasil fosse outro Brasil. E é ao mesmo tempo, graças ao turbilhão generalizado que Amanhã acaba por potencializar qualidades que ele nem imaginava ter, de uma expectativa de comunicação diante das diferenças se arvora então o que o país de fato é, muito mais complexo, indomável, injusto e cheio de falhas históricas. Falta de políticas públicas, ausência de diálogo familiar, o nascimento de novas proposições individuais, desestruturação de básicos elementos de agregação psicológica, sobram temas a serem pontuados aqui, quase todos provocadores de dinâmicas sociais que precisam ser retrabalhadas, para impedir os quadros vigentes no próprio filme. 

Através de um trabalho de montagem repleto de imaginação, que realiza esforços hercúleos dentro do caos que a produção encontra, Amanhã é, acima de todas as coisas, um encontro com a instabilidade, de todas as formas e gêneros. É um trio de protagonistas que insistem em fugir da imagem, de maneira deliberada, ou da forma acidentada que dá pra ser, quando não nos conhecemos mais, ou quando nos perdemos de nossas ambições. Cristian mais de uma vez declara que o filme é “o sonho de uma vida”, e ainda assim seu corpo foge; Julia, mesmo demonstrando segurança, não consegue aguentar a barra de confrontar tudo que não foi, simplesmente; Zé Tomás é uma esfinge que os últimos governos podem explicar, ou não. A partir dessas três figuras fugidias, Pimentel faz a única coisa possível: termina seu testamento sobre um tempo e um lugar que nos desfigura. 

Um grande momento
Julia, fora do plano, vocifera contra Zé Tomás

[28º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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