Crítica | Catálogo

Os Ossos da Saudade

O eterno auxílio da memória

(Os Ossos da Saudade, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Marcos Pimentel
  • Roteiro: Marcos Pimentel, Ivan Morales Jr
  • Duração: 107 minutos

A angústia do despertencimento, ou de excesso do oposto. O que é pior, não se sentir parte de lugar nenhum, ou viver em constante clima de divisão entre vários caminhos possíveis, vários lares, e ter que escolher um só? Os Ossos da Saudade enfileira reflexões muito profundas a respeito dos emigrantes possíveis, de seus sentimentos conflitantes entre os espaços que são sua casa materna e os que escolheram para tal. Tanto em sua narrativa quanto no poder imagético que empreende na ânsia de contar uma história com profundidade, o longa que esteve em competição no 25o. Cine PE acessará chaves diversas de empatia e identificação entre seus personagens e o espectador.

O diretor Marcos Pimentel tece uma rede que se une pela língua portuguesa, a unir seus protagonistas. Brasil, Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde estão irmanados em lugares distintos, mas que refletem sentimentos similares em relação às escolhas que foram feitas por cada um deles, homens e mulheres em busca de vários algos perdidos pelo caminho da existência. Através de sua opção pelo experimental que alimenta a necessidade do encontro de seus personagens, um encontro existencial que revelaria suas raízes mais profundas, o diretor consegue com sutileza construir uma conexão entre o que se vê e o que se sente.

Há uma intenção também performática em Os Ossos da Saudade, ainda que seus protagonistas não sejam necessariamente todos bailarinos ou jogadora de capoeira – só duas mulheres o são. Ainda assim, é um filme que reverbera o material corporal para sintetizar suas questões, muitas vezes. Quando filma o pescador em contato com o mar, ou quando filma alguém em torno de material orgânico externo, como rochas da beira da praia ou uma casa inundada por areia, cada uma dessas sequências é invadida por grande matéria-prima de performance, sem com isso criar uma atmosfera artificial para o todo, mesmo que tudo seja essencialmente artifício. Sim, o filme é ambíguo nesse tanto.

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Os relatos de todos em cena removem do filme sua aura teatralizada para que possamos então mergulhar naquelas vivências tão puras, naquelas motivações tão genuínas, e na forma como cada um ali precisou estar em mais de um lugar para aprender a perder. Porque é dessa consciência também que parte e onde chega a produção, quando se deseja mais de uma coisa ao mesmo tempo, você estará sempre ganhando e deixando de ganhar, simultaneamente. Não há forma ideal, os personagens têm suas existências perpassadas por um sentimento de desabrigo constante, que não amenizaria em estando onde não se está.

Os Ossos da Saudade, nesse sentido, apesar de sua atmosfera concreta em seus espaços ocupados ou não, que acabam por ser tão protagonistas quanto as pessoas, aponta para reflexões modernas virtuais, com sua falsa impressão de poder fazer e estar em muitos lugares ao mesmo tempo, em todos. O que Pimentel monta é um quadro onde a saudade é um sentimento constante e ininterrupto, que nenhuma proximidade aparente e tecnológica, aplaca. Falta o corpo presente fisicamente, isso é uma impossibilidade real que os olhos entregam com muita verdade.

A preparação do corpo, atrelada à fotografia absurda de Matheus da Rocha Pereira, é uni-los ao cerne atmosférico de cada espaço filmado. O mar azul refletido no azul profundo dos olhos de Zé, o corpo elástico de Huila que se contorce como a areia das dunas que invadem o castelo soterrado, a coragem de Rodrigo ao desafiar os pontos extremos da geografia e que se equiparia ao seu próprio desprendimento inicial de exílio. Assim como os caranguejos, que sempre tentam seguir apesar das ondas do mar, e enfrentando essa micro aventura com perseverança de que qualquer lugar será o seu lugar, cada um em Os Ossos da Saudade tem a certeza de estar no lugar certo. E a mesma certeza oposta.

Um grande momento

Descobrir a casa da areia


O crítico viajou ao 25° Cine PE – Festival Audiovisual a convite do evento.

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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