- Gênero: Drama
- Direção: Manuela Martelli
- Roteiro: Manuela Martelli, Alejandra Moffat
- Elenco: Aline Küppenheim, Nicolás Sepúlveda, Hugo Medina, Alejandro Goic, Carmen Gloria Martinez, Marcial Tagle, Amalia Kassai, Gabriel Urzúa, Antonia Zegers
- Duração: 90 minutos
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Não é como se Carmen fosse uma dona de casa deslumbrada sem acesso a informações do período em que vive. Mas em 1976 essa mulher se vê em uma situação, para ela, inusitada de ser confrontada com sua passividade, e acaba promovendo uma mudança efetiva no seu mundo intocado. É como se, ao adentrar enfim um universo clandestino, ela só então passasse a enxergar com clareza o que sempre contemplou seu entorno. Um exemplo disso é a cena da viagem de barco com o casal de amigos, onde provavelmente ela está ouvindo as atrocidades que sempre ouviu, mas agora tudo mudou – ela não aguenta mais. Exibido na última Quinzena dos Realizadores, o filme entrou quase escondido na Netflix, o que prova a incapacidade (falta de vontade?) do streaming em divulgar o que provoca uma real diferença em sua programação.
Manuela Martelli estreia na direção de ficção com essa sutil representação a respeito da ditadura chilena no ano específico de batismo da obra, em que classes abastadas tinham uma visão mais distanciada dos eventos. Não é algo que nunca tenha sido feito, na verdade grande parte dos filmes sobre ditadura falam sobre a mudança de alguma classe que se descobre para aqueles eventos. O que conta aqui não é apenas a visão feminina sobre tais desdobramentos, mas essa visão sobre o que a move no mundo, ao sair de uma postura estática para algo orgânico e introduzido. Como um despertar maduro para um outro lado do mundo que contemple mais do que nossa própria esfera, para então motivar a questionar o que estava longe da percepção.
1976, como já dito, não trabalha na ótica do explícito. Não, isso não quer dizer que seja uma narrativa atmosférica, de tratamento hermético, longe disso; ao mesmo tempo, reside um filme acontecendo nas entrelinhas, no que não é filmado, ou visto. Tem uma outra ação que acontece longe dos olhos, e que a protagonista espreita, seja pessoalmente ou além da sua imaginação. Nesse sentido, o que é permitido de desabrochar social e político dessa protagonista é como uma nova adolescência, período de descobertas, momento onde realizamos diversas ações pela primeira vez, época de incertezas que muitas vezes não chegam a se tornar concretas. Carmen tateia em novas convenções que estão modificando a pessoa que ela conhecia anteriormente, e com isso alterando também sua visão de quem a cerca.
É desses detalhes que não estão a olho nu que 1976 cria sua rede de proteção. Carmen pode ou não ser perseguida, e isso altera a corporalidade da personagem e também a visão do espectador; seu caminho de braços dados a uma companheira cobre o que acontece atrás delas, e com isso as informações de perigo estão sendo dadas, mas não assimiladas. Quando a protagonista e seus netos caminham rente a um desfiladeiro, é na imagem ao longe que a câmera está interessada, mesmo que o perigo aos protagonistas venha de outra ordem. Mais tarde, esse “encontro” será indagado pelas crianças, em um dos momentos desconcertantes do filme, e que mostra exatamente que existe um filme acontecendo no plano, e um outro acontecendo nos arredores do campo de observação.
Interessante observar que do mesmo ano onde surgiu Argentina 1985, também tenha vindo 1976. Dois filmes que debatem a ditadura em dois países latinos, mas sob leituras paralelas – uma questão verídica e de viés macro, a outra sob as vestes de ficção para ler uma personagem específica. Em lugares díspares mas visando o mesmo tipo de iluminação temporal, são filmes que representam um resgate a um tempo ameaçador a partir das ameaças da extrema direita. Quase complementares em seus lugares de tratamento, se comunicam de maneira enviesada mas conseguem ambos fazer sua perambulação em nosso tempo para tratar de um passado que é constantemente evocado no hoje real. Seja pela via pública ou pela privada, não podemos deixar de tratar o conhecimento como algo primordial para que não haja amanhãs sombrios como os mostrados nesses filmes.
Aos poucos, nós passamos a dividir com Carmen suas interações com o mundo, e do que ela ainda precisa se ater para continuar em movimento. O que ela vê, o que ela percebe, o que ela compreende, o que suas ideias permitem computar, o que chega até ela e ela decodifica a partir daquele extrato de história. Seu envolvimento com Elias, com o padre, com o marido, os filhos e netos, é tudo parte integrante de uma vida no ponto exato da mutação. Seus sentidos estão aguçados para o externo também e é chegada a hora de tentar ser alguma outra coisa; nesse sentido, o trecho final de 1976 me recorda o mesmo ponto de 45 Anos. Em determinado momento da vida, quando algo acontece e uma certa fatia de verdade nos é revelada, nada mais pode fazer frente ao novo – e daí para se tornar uma outra pessoa nem é mais um pulo, mas uma realidade que simplesmente precisamos aceitar.
Um grande momento
O desfiladeiro