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Argentina, 1985

Olhar para o passado

(Argentina, 1985, ARG, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Santiago Mitre
  • Roteiro: Mariano Llinás, Martín Mauregui, Santiago Mitre
  • Elenco: Ricardo Darín, Peter Lanzani, Alejandra Flechner, Santiago Armas, Laura Paredes, Carlos Portaluppi
  • Duração: 140 minutos

Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado.

Emília Viotti da Costa

Estamos a dias do segundo turno das próximas eleições presidenciais brasileiras e um dos candidatos é Bolsonaro. Disputa a reeleição e inacreditavelmente milhares de brasileiros cogitam votar nele dois anos depois de ele tripudiar de pessoas morrendo em agonia pela Covid-19, negar a ciência ou retardar a compra de vacinas que poderiam ter salvo centenas de milhares de vidas. Mas não é esse o ponto, embora isso essa seja um sinal claro e evidente da falta de memória. Quero falar especificamente de um outro momento da vida deste mesmo senhor, enquanto ainda deputado, quando em uma votação televisionada para o mundo inteiro, ele se dirige ao microfone e, ao justificar seu voto pela cassação do mandato de uma presidente democraticamente eleita, homenageia um dos mais cruéis torturadores da ditadura militar brasileira. O homem citado por Bolsonaro foi o único militar condenado pela justiça. Dentre suas crueldades, torturava crianças e ficou conhecido por levar os filhos das presas para vê-las sendo torturadas e estupradas. Pois seu admirador é o homem que disputa o segundo turno e tem a preferência de uma parte significativa da população.

Assistir a filmes como Argentina, 1985 é ter a certeza do quão fundamental é manter viva a História e, muito mais do que isso, punir aqueles que fizeram da morte e da tortura um instrumento de governo e poder. Seguindo a Operação Condor, o país vizinho passou pelo estado de exceção nos mesmos moldes do Brasil e lá a ditadura durou sete anos. Porém, assim que a democracia foi restaurada, em 1983, o presidente Raúl Alfonsín determinou que os ex-comandantes das Forças Armadas fossem julgados por crimes contra a humanidade. Obviamente, houve questões quanto à posição destes, tentativas de abafar o julgamento militar e interferência da mídia. Ao mesmo tempo, a transformação social se estabelecia e os fatos mais tenebrosos tornavam-se públicos, como marca a publicação do relatório “Nunca Más”, um documento com as denúncias de desaparecimentos, sequestros e torturas acontecidos no período.

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Era necessária uma resposta à atrocidade. Ainda que com falta de paridade, pois havia uma força implícita contra a ação e um condicionamento ao ônus da prova, o governo decidiu tornar o julgamento civil, “Vamos dar aos militares o que não deram a suas vítimas: um julgamento justo”. O longa de Santiago Mitre, diretor de Paulina e Leonora, fala sobre o famoso Juicio de las Juntas, onde, pela primeira vez na história, ditadores – os integrantes das três primeiras juntas militares que governaram a Argentina – foram julgados por seu próprio povo e acompanha a atuação do promotor Julio Strassera desde antes de a instauração do processo até a sentença. Elegante na forma e obviamente reverente aos fatos, a obra tem ritmo, agilidade e consegue, em um momento tão importante de apagão mundial, narrar o evento específico e resgatar o sentimento do país de então.

Argentina, 1985
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O roteiro assinado pelo próprio Mitre, ao lado de Mariano Llinás faz boas escolhas ao balancear o drama familiar, a ação no grupo de promotores e o suspense no tribunal. O que a dupla tem em mãos é um material denso e complexo. Embora uma parte encontre espaço para ficcionalizações nas relações íntimas de seus protagonistas, Strasssera, vivido por Ricardo Darín, e seu assistente Luiz Moreno Ocampo, interpretado por Peter Lanzani, outra precisa ser mais literal ao resgatar parte dos mais de 700 depoimentos que serviram como base para a acusação. O denso material é bem trabalhado, alguns dados são apenas indicados e, ainda que não detalhados, todos são postos de modo que façam sentido. Já outros recebem mais atenção.

Argentina, 1985 consegue resgatar o momento e transformá-lo em uma peça cativante, que informa e emociona. Mesmo com o olhar demasiadamente apaixonado, algo que se justifica em um país que passou por tantas intervenções militares, sendo uma delas tão traumática, há muita habilidade nessa reconstrução imagética sensorial daquele momento. E é impressionante como, para além da narração factual, existe o real alcance de uma pátria em processo de reidentificação. Porque não são apenas a mise-en-scène, as boas escolhas de montagem, soluções estéticas que trazem o passado em simulações e ambientações.

Mitre faz de seus personagens espelhos de um momento. Para além das identidades mais óbvia de Strassera, que em toda sua complexidade e contenção traz um sentimento de impotência do passado, ou Ocampo, que com sua legalidade e o arrobo privilegiado acredita bem mais no sistema, há a dicotomia de uma sociedade. Na figura do jovem filho do promotor, ou aquele que está sempre vigilante, vivido por Santiago Armas Estevarena, está o desejo de conhecer o seu passado e quer saber tudo sobre ele – e sobre o futuro. Mas há ainda um outro lado na sociedade, viúvo de uma estabilidade fantasiosa e manipuladora, os empoeirados viúvos da versão TFP de lá, que fecham os olhos à barbárie, como a mãe do assistente da acusação. É essa nova Argentina ao mesmo tempo culpada, insegura, corajosa, esperançosa, moderna e antiga que nos guia por todas as fases do processo, passando pela investigação, depoimentos em juízo e cobertura jornalística até chegar às belas palavras de Strazzera em seu encerramento. Com ela ficamos tensos, nos divertimos, nos chocamos e nos emocionamos. 

Ninguém pode permitir que sequestro, tortura e assassinato constituam incidentes políticos ou “eventualidades de combate”. Agora que o povo argentino recuperou o governo e o controle das instituições, assumo a responsabilidade de falar em nome dele que o sadismo não é uma ideologia política, nem uma estratégia bélica, mas uma perversão moral.

Julio Strazzera

É importante que se veja, de novo, de novo e de novo o que aconteceu. Não há exposição gráfica do ocorrido e isso não é necessário, porque o horror está ali. A força do Juízo de las Juntas e renascimento da Argentina, com o julgamento daqueles que a tinham matado com medo e violência são marcas do fim de um período de trevas e horror. Mitre traduz isso muito bem e Argentina, 1985 é essencial em momentos quando a memória vai se enfraquecendo e a noção de humanidade começa a se perder. E se ainda é necessário em países onde é História, a punição existiu e mudou uma nação, imagina onde a escolha foi por fingir que “passou” apenas. O Silêncio dos Outros está aí para falar do franquismo, e as faixas que vemos em manifestações brasileiras pedindo a volta do que já foi o pior momento da nossa nação também. Um traço do movimento reacionário bizarro que ganhou corpo e forma em uma figura que defende não só o período, mas seus nomes mais abjetos. O caminho de quem ignora o próprio passado é previsível, a repetição, e a idolatria de um ao carrasco e de outros a um dos mais antidemocráticos políticos da atualidade demonstram o rumo terrível.

Um grande momento
As alegações finais

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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