Crítica | Festival

Conto de Fadas

No limbo da História

(Сказка, RUS. BEL, 2022)
Nota  
  • Gênero: Fantasia
  • Direção: Aleksandr Sokurov
  • Roteiro: Aleksandr Sokurov
  • Duração: 77 minutos

De repente, nos damos conta que Aleksandr Sokurov estava há sete anos sem filmar, e que na década passada, apenas dois filmes foram lançados (Fausto e Francofonia). Terá o cineasta russo se cansado de produzir reflexão e análise, a partir do seu debruçamento cinematográfico. Esse novo Conto de Fadas preconiza que não desejaríamos isso dele, a título de perder petardos tão marcantes quanto esse. Aos 71 anos, o vencedor de um Leão de Ouro mostra mais um lado surpreendente dentro de uma filmografia que nunca esteve descansada. Através desse novo filme, somos lembrados de maneira sutil do porque não podemos desconsiderar um Sokurov antes de sequer vê-lo, e que sua vontade de experimentar não cansa de promover muitas coisas além do que a experiência de cinema. 

Conto de Fadas, como o título já sugere, carrega junto de si uma carga onírica, como uma fantasia animada, um delírio barroco delicioso de assistir. Estamos diante de um purgatório com uma legião de líderes que mudaram o destino do mundo, tais como Adolf Hitler, Benito Mussolini, Winston Churchill e Josef Stalin. Do nascimento desse encontro, surge também a necessidade de construção de uma realidade paralela, que o filme abarca porque se entende puramente ficcional e ilusório desde sempre. Tudo ali é permitido, todas as cerimônias não precisam ser feitas, não há qualquer necessidade de registro plausível de concretude, a partir já da apresentação da premissa. Dito isso, fica fácil de assimilar os códigos de chegada a essas imagens, mergulhadas em artificialidade. 

Conto de Fadas
Cortesia Mostra SP

São os códigos de hoje, de um mundo moderno que começa a avançar em direção ao tal do cinema, companheiro nosso de mais de 120 anos. Construído através de tecnologia deepfake com imagens de arquivo e áudios ora gravados diretamente para produção, ora adaptações de momentos já existentes, Conto de Fadas é um trabalho hercúleo de imaginação. Suas montagem, criação de universo e comunicação atemporal, o transformam em uma daquelas obras que encontramos somente de tempos em tempos, e que ultrapassam os conceitos de qualidade ou falta de. Ao olhar para a filmografia de Sokurov, e feitos seus anteriores, tais como Arca Russa, chega-se à conclusão que poucos poderiam lidar de maneira tão acertada com esse material e seus desdobramentos. 

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Irônico desde a saída, o filme consegue estabelecer um paralelo ultra mordaz ao colocar Jesus Cristo (sim, o próprio filho do Homem!) em uma ante sala em mesmo pé de igualdade que os demais – ou se dizendo assim, em uma lista que ele faria questão de aguardar. A progressão de eventos, diálogos e situações envolvendo o encontro entre tais nomes, o que eles eventualmente protagonizaram e sua relação com as personalidades alheias, a observação às suas próprias e uma relação direta com a atualidade, transformam Conto de Fadas em um desses filme-evento, de proporções outras que não as dos arrasa quarteirões norte-americanos. O que está em jogo aqui, em suas provocações, e na necessidade do debate que essas imagens provocam, está no campo artístico-político que a arte consegue alcançar, vez por outra, independente de sua origem até.

Conto de Fadas
Cortesia Mostra SP

Como não poderia deixar de acessar outro código, Conto de Fadas também abraça o humor com muita facilidade, tendo consciência que sua qualidade reside nessa conexão do amoral com o profano, e uma pitada de ousadia. Sokurov mais uma vez olha para a realidade e cria um conceito a partir dela dentro de um esquema histórico, seja utilizando Dante Alighieri como inspiração, seja reescrevendo passagens desses déspotas para a apreciação e discussão do hoje. Rapidamente, os paralelos são levantados entre figuras da atualidade, com direito a uma recorrente brincadeira envolvendo a Rainha Elizabeth, tão genial quanto premonitória, e que nunca deixa de fazer graça e sentido. 

Com uma ideia tão fascinante quanto essa, Sokurov renova seu arsenal de calibre infindável com uma observação sobre coisas muito óbvias mas igualmente pertinentes, a respeito de como o mal é cíclico e está sempre tentando retornar. Cabe à Humanidade frear ou dar luz a práticas fundamentalistas e destruidoras. O papel de uma obra do calibre de Conto de Fadas é reafirmar valores que não podem ser mitigados pela força do tempo, porque é o próprio tempo que nos colocará a prova sobre ressuscitar ou não novos messias, que raras vezes tem o valor de seu titular original. 

Um grande momento
Os telefonemas para Elizabeth

[46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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