Crítica | Festival

Trilha Sonora para um Golpe de Estado

Música como instrumento

Há momentos na história que condensam o mundo inteiro. O assassinato de Patrice Lumumba é um deles. Ele não foi apenas o primeiro-ministro do recém-independente Congo, foi o símbolo de um pan-africanismo que incomodava potências coloniais e reverberava como ameaça real à lógica imperialista. Lumumba representava um país que ousava ser soberano sobre suas próprias riquezas, e isso era imperdoável para quem sempre as explorou.

A independência, celebrada em 1960, durou semanas antes de se tornar instável. O Congo herdara fronteiras arbitrárias, conflitos internos e, sobretudo, a cobiça externa. A Bélgica, que havia colonizado e saqueado o território por décadas, não deixou o país em paz. Junto com ela, a CIA e o serviço secreto britânico se movimentaram para enfraquecer Lumumba, alimentando divisões internas, incentivando insurreições regionais e garantindo que os interesses econômicos do Ocidente permanecessem intocados.

O golpe de Estado, liderado por Mobutu Sese Seko, não aconteceu sem apoio. Ele foi o resultado de uma arquitetura precisa de desestabilização. Assim como a execução de Lumumba, meses depois, foi um aviso ao mundo e às outras repúblicas recém-independentes do continente africano: qualquer projeto político que desafiasse o eixo ocidental teria destino semelhante.

É nesse cenário que Trilha Sonora para um Golpe de Estado posiciona sua narrativa. A música, especialmente o jazz, aparece como linguagem ambígua. Exportada pelos Estados Unidos como símbolo de liberdade, improvisação e democracia cultural, serviu também como instrumento diplomático durante a Guerra Fria. Músicos negros como Louis Armstrong e Duke Ellington foram enviados em turnês pela África e outros países, não como agentes conscientes de uma trama política, mas como embaixadores involuntários de uma imagem que servia aos interesses do Estado.

Mas o estilo musical, ao mesmo tempo, carregava outra face: a de resistência e descolonização. Abbey Lincoln e Max Roach romperam o silêncio protocolar após o assassinato de Lumumba. Invadiram o Conselho de Segurança da ONU, transformando o espaço frio e diplomático em palco de indignação. A música, que até então fora usada como cortina de aproximação, tornava-se denúncia direta e furiosa.

O documentário costura essas camadas sem nunca diluir a tensão. A estética aposta no encontro entre imagem de arquivo e música. Discursos oficiais, imagens das ruas de Leopoldville, registros da ONU, fotografias de Lumumba e dos protestos se encontram com as notas de jazz que ora soam como celebração, ora como lamento. É nesse contraste que o filme encontra sua força.

O pan-africanismo, sufocado em 1961, continua presente no filme como memória viva. Cada imagem de Lumumba, cada fragmento de sua voz, carrega não apenas a história de um homem, mas de um continente que se moveu em busca de autonomia. Trilha Sonora para um Golpe de Estado não se limita a denunciar o golpe, ele expõe o funcionamento do imperialismo moderno e a maneira como a cultura é absorvida, moldada e usada como ferramenta de poder.

Ao final, a música já não pode ser ouvida com inocência, assim como o cinema não pode ser visto com ingenuidade ou qualquer outra arte que tenha sido utilizada extensivamente para propagandear um império absorvida sem atenção. O jazz permanece vivo, mas carrega o eco incômodo de um tempo em que liberdade e opressão dançaram a mesma melodia. O filme não busca oferecer reconciliação, devolve a História como ferida que não cicatriza.

Um grande momento
Uma política angelical

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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