- Gênero: Drama
- Direção: Ettore Scola
- Roteiro: Jean-Claude Penchenat, Ruggero Maccari, Furio Scarpelli, Ettore Scola
- Elenco: Étienne Guichard, Régis Bouquet, Francesco De Rosa, Arnault LeCarpentier, Liliane Delval, Martine Chauvin, Danielle Rochard, Nani Noël, Aziz Arbia
- Duração: 112 minutos
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Há quase 40 anos, um dos mestres do cinema italiano, Ettore Scola, se impingiu de um desafio: atravessar seis décadas de História circundados em um salão de baile francês, seus personagens peculiares, sua atmosfera mutante, e os períodos entrecortados pelos fatos de cada tempo. O que a princípio se desenharia como uma tarefa surreal por definição acaba pouco a pouco se desenhando fascinante, uma experiência transformadora não apenas para os tipos em cena. Sem um par cinematográfico que se equipare em qualquer instância, O Baile sobrevive a revisões, um material cada vez mais delicado e complexo em suas inserções.
O filme é uma adaptação para o cinema de um espetáculo montado por Jean-Claude Penchenat (que está no elenco) para o Théâtre du Campagnol, uma daquelas tarefas que nascem solitárias no tempo. Não havia precedente para o que Scola promove através dessa imaginação cinematográfica, uma espécie de passada a limpo, através da música e da dança, de momentos da sociedade francesa entre os anos 1930 e 1980, que acabam sendo refletidos pelos hábitos e costumes do mundo ao longo de quase duas horas de projeção. O resultado é inclassificável justamente porque nada do que é visto foi reproduzido posteriormente.
A disposição do filme não está apenas nessa visão macro a respeito de cada recorte de década, mergulhando em um olhar social sobre cada tempo, mas a especificidade desenvolvida por cada ator a cada nova discussão temporal e imagética. Milimetricamente pensados e desenvolvidos para funcionar estando em destaque ou apenas como “coro de cena” — o que eventualmente acontece com cada um deles — não há como destacar uma participação, porque todas formam esse material humano tão diversificado quanto suculento. Cada um deles nos prega novas peças, quando achávamos que já tínhamos visto o relevo correto apresentado.
Mesmo quando suas personas dominam a cena (caso do homem-vigia, que está sempre à espreita parecendo tramar algo terrível contra todos), Scola não se furta em nos surpreender com possibilidades amplificadas por um detalhe ou uma sutil alteração de datas, como a cinéfila (que sacada!) que apenas foi ao salão para observar, e no derradeiro suspiro do filme, subverte toda sua participação, ressignificando o conceito de espectador enquanto ser passivo, como uma homenagem do diretor a um papel ingrato dentro da cadeia cinematográfica — o público, que precisa (precisa?) ser emocionalmente desafiado nessa matemática, e deseja por isso.
Além do aspecto narrativo da obra, que desenha com perfeição esse quadro progressivo de eventos que o tempo encapsulou, Scola e seu trio de roteiristas ainda promove micro universos particulares dentro de cada década. Então temos a violência física com ecos sexuais dos anos 1950, enquanto a chegada do rock nos anos 1960 deflagra o começo de uma picardia rebelde que também abre espaço para o amor literalmente livre, junto com a passagem mais tocante de toda a projeção, que é o momento relacionado à Segunda Guerra Mundial, seus desdobramentos e principalmente finalização. Paralelo a cada recorte, o filme pincela comentários de classe mordazes e acertados, além de um sistema de castas estético e social que discrimina mais do que agrega, trazendo responsabilidade ao projeto.
Como já dita, não é de se espantar que a construção da mise-en-scène do gênio por trás de Um Dia Muito Especial e Feios, Sujos e Malvados seja tecnicamente primorosa, mas O Baile é definitivamente assustador. Entre uma profusão de planos-sequência espantosos, uma edição surreal que correlaciona eventos paralelos e organiza com exatidão o ritmo e a sincronia dos mesmos — que não é nada fácil, pois trata-se de um filme que é a um só tempo musical, comédia, drama e tem sua ação acontecendo de maneira non stop. Como se pudéssemos tocar o estado de tensão com que cada bloco de eventos é apresentado, o filme é uma suntuosa realização daquelas impossíveis de serem refeitas – ainda bem.
Crônica de muitos momentos da metade de um século de um país (que reflete o mundo), O Baile se insere no que consideramos clássico mas sem sentar em uma zona confortável, imutável ou envelhecida. Na verdade, estamos diante do oposto disso — um filme arriscadíssimo, que aceita com gosto a corda bamba que se auto impôs e desfila por ela respondendo a cada questão com disposição para mais e mais risco, técnico e discursivo. Daqueles momentos do cinema onde o plot twist é o arcabouço de realização, que não cansa de apavorar em sua zona de perfeição.
Um grande momento
O retorno do soldado
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