Crítica | Festival

O Bolo do Presidente

O início do fim da inocência

( مملكة القصب, IRQ, CAT, EUA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Hasan Hadi
  • Roteiro: Hasan Hadi
  • Elenco: Baneen Ahmed Nayef, Sajad Mohamad Qasem, Waheed Thabet Khreibat, Rahim AlHaj
  • Duração: 105 minutos

O Irã, há algumas décadas atrás, tornou-se no Brasil sinônimo de cinema cult, expressão empobrecida que hoje caiu em desuso, mas que na época identificava os filmes de arte, alternativos ou não-estadunidenses a chegar ao circuito de cinema. Quando houve o boom dessas produções ao redor do mundo, não demorou para o país abraçar a cinematografia, reconhecendo esse valor inicial que se consolidaria ao longo das décadas. Entre as muitas produções, uma narrativa se mostrava infalível: uma criança passando por apuros para realizar uma tarefa qualquer, numa via crúcis que estigmatizou o cinema iraniano com (belos) filmes como O Balão Branco, Filhos do Paraíso, A Cor do Paraíso, O Espelho, Onde Fica a Casa do Meu Amigo? e muitos outros. Esse ano, o candidato do Iraque ao Oscar de filme internacional tem esse sabor de nostalgia: O Bolo do Presidente já ganhou o Camera D’Or no Festival de Cannes, mesmo prêmio que Jafar Panahi carregou em sua estreia no cinema, justamente com o título que abriu a lista citada. 

Apesar do momento complexo envolvendo o país em sua geopolítica, Hasan Hadi consegue criar uma aventura cinematográfica comovente, que nos faz ter saudade justamente dessa produção tão característica de um outro tempo. Aliado à natural capacidade de encantamento que essas produções tinham e continuam exercendo no espectador, O Bolo do Presidente carrega para 2025 várias incursões narrativas que à época não eram discutidas, e aqui tornam-se prementes. Dizem respeito ao tratamento dado às mulheres, que mesmo em uma sociedade onde o patriarcado parece imutável como a iraquiana, já revela seu ímpeto de mudança, ao menos no espaço artístico. Tendo como protagonistas neta e avó, o filme mostra como essas duas personagens seguem por lugares apavorantes e opressores, que se refletem justamente em seu gênero. 

Como esse tipo de produção pede, o ritmo da edição torna O Bolo do Presidente uma experiência de angústia contínua, onde a ideia é carregar para dentro da narrativa o espírito de sua exasperação. A cargo do romeno Andu Radu (que já montou longas onde seu trabalho foi essencial, como Terça Depois do Natal e No Andar Debaixo), é impresso na produção uma velocidade que não deixa o fôlego ser retomado. Como duas narrativas interligadas correm em paralelo, o filme não se perde dentro de sua lógica de apresentar esse desencontro, ao mesmo tempo em que não se deixa levar por qualquer paternalismo ou deixar crescer o melodrama. Se ele existe, é justamente a despeito do que fazem Radu e Hadi ao incorporar essa descarga de adrenalina em uma produção que não se encerra na emoção.

O Bolo do Presidente ainda concentra esforços em se manter observacional em relação às críticas feitas ao ditador Saddam Hussein, figura negativamente emblemática dos anos 90 onde o filme se passa, e carrega em DNA. Isso porque existia uma tradição que o filme trata de mostrar: há mais de 30 anos atrás, foi criado uma gincana anual para comemorar o aniversário de Hussein, onde todas as escolas do país eram responsáveis pela feitura de um bolo de aniversário para ele. O que o roteiro mostra é o périplo de Lamia aos 9 anos, sorteada como responsável pela feitura da guloseima, mesmo não tendo nenhum ingrediente em casa para tal. Pense em todos os filmes citados no primeiro parágrafo, e o leitor terá uma ideia do que irá passar nossa pequena personagem central. 

Algumas passagens verdadeiramente graves, como as que sugerem uma curva acentuada e inesperada na direção da pedofilia, mostram que Hadi não tem medo de se aventurar por espinhos universais. Também não lhe falta coragem para tornar a jornada de sua pequena Lamia ainda mais danosa emocionalmente do que era o esperado. Ainda assim, não vejo uma tentação à tortura ou um embelezamento de temas apavorantes; tudo é desenvolvido com sutileza, sem detalhamento do que está sendo tratado, e por isso mesmo mais assustador. É o cinema da nostalgia avançando nas discussões que propõe, e não apenas se mantendo estagnado ao mundo de hoje. 

Um grande momento
O cinema 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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