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O Canto do Cisne

Homem do pântano overdrive

(Swan Song, EUA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Ficção Científica
  • Direção: Benjamin Cleary
  • Roteiro: Benjamin Cleary
  • Elenco: Mahershala Ali, Naomie Harris, Glenn Close, Awkwafina, Adam Beach, Dax Rey, Nyasha Hatendi
  • Duração: 112 minutos

Imagine que você esteja em uma região pantanosa, se abrigando debaixo de uma árvore, no meio de uma tempestade com raios e trovões. De repente, um relâmpago cai e faz com que seu corpo se desintegre completamente, a um nível molecular. Você simplesmente deixa de ser. Simultaneamente, no entanto, a árvore embaixo da qual você se abrigava também sofreu alterações radicais. Todas as partículas que compõem a árvore foram reorganizadas pela descarga elétrica, e um novo você nasce. Fisicamente, sua nova versão em nada se difere daquela que foi desintegrada pelo raio. Cada fio de cabelo está no mesmo lugar, cada marca do tempo deixada no seu corpo continua idêntica. Mas é você? Para o filósofo americano maluquinho Donald Davidson, criador deste experimento mental proposto em um artigo de 1987, a resposta seria um categórico não. Por mais idêntico que fosse, e por mais que reconhecesse as pessoas e o mundo ao seu redor, sua nova versão, forjada a partir do tronco da árvore, não conheceria seu método preferido de preparo de café e não teria as capacidades cognitivas exclusivas a você. Mas não é por aí que vai o longa de estreia do cineasta Benjamin Cleary. 

Em O Canto do Cisne, lançamento da Apple TV, acompanhamos Cameron Turner (Mahershala Ali, em sua estreia como protagonista), um dedicado pai de família e ilustrador o qual, após ser diagnosticado com uma doença terminal que avança rapidamente, tomou a decisão radical de produzir um clone perfeito seu, com a exceção da enfermidade terminal e que seria deixado no lugar do protagonista após a sua morte. Uma troca tão perfeita que passaria despercebida a sua família. O filme, sempre marcado por uma ideia de binarismo, se estrutura em dois tempos. Um deles nos revela os dias em que um Cameron melancólico vai até a casa futurista localizada no meio de uma fria floresta e onde funciona o centro de operações da doutora Eve Scott (Glenn Close), cientista responsável pela produção dos clones. No segundo tempo do filme, vemos flashes do passado de Cameron, como o dia em que conheceu sua esposa Poppy (Naomie Harris), ou os momentos traumáticos vividos pelo casal após a morte precoce do irmão de Poppy, Andre. Esses flashes vão sendo apresentados à medida em que Cameron e sua psique vão sendo sincronizados ao novo clone. Mas calma lá, um clone? Que ideia é essa, pô. 

O Canto do Cisne, de Benjamin Cleary
Apple Originals

Cleary nos apresenta um futuro clean, completamente polido, iluminado e branco, em que os humanos usam lentes de contato de realidade aumentada e onde robôs com inteligência artificial são capazes de manter um diálogo perfeitamente natural enquanto vendem barrinhas de chocolate em vagões de trem. Parece exatamente a versão shiny do futuro que a Apple tenta promover (se você tiver dinheiro para pagar). O filme parece mesclar elementos de Ex_Machina, Black Mirror e Ela, com pitadas de Brilho eterno de uma mente sem lembranças mas com menos originalidade que os quatro. Voltemos à questão do clone. No universo futurístico de O Canto do Cisne, a doutora Scott desenvolveu uma tecnologia tão avançada que é capaz de gerar um clone perfeito, física, mental e espiritualmente. A partir daí, o diretor introduz questionamentos interessantes mas pouco explorados a respeito da essência humana, aquilo que nos faz sermos nós mesmos, da memória, do luto e da relação que estamos construindo com tecnologias que cada vez mais se entranham em nossos corpos.

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A tentativa de levar tais ideias futuristas para a tela do cinema resultou em um filme com um visual de pouca personalidade, que tentou retratar a frieza de um mundo exageradamente polido, mas errou na dose e se tornou, ele mesmo, exageradamente polido. A trilha sonora cria um clima de tensão interessante, mas também se parece demais com coisas que já vimos em outros filmes de drama-suspense-ficção científica dos últimos 10 anos. A atuação dupla de Mahershala Ali é um dos pontos altos. A fotografia e os truques visuais que fizeram os dois clones de Cameron contracenarem em um mesmo plano, também. Os outros personagens poderiam ser um pouco mais desenvolvidos. Além do protagonista, apenas Poppy e Kate — uma mulher à beira da morte mas bem humorada, que também decidiu criar um clone e com quem Cameron faz amizade —  parecem ter algum tipo de bagagem, e ainda assim pouco desenvolvida. E nossa, que oportunidade o filme perde em um determinado ponto do segundo ato. Seria corajoso, mas optaram pelo caminho seguro (e o desenvolveram bem, há de se falar).

O Canto do Cisne, de Benjamin Cleary
Apple Originals

De acordo com o experimento do Homem do Pântano proposto por Davidson, a cópia gerada no tronco da árvore não poderia realmente ser você, pois faltava a ela a sua consciência, algo que, segundo o filósofo, não pode ser transmitido pelo ar, não é material. No entanto, o filme de Cleary parece tratar a questão de maneira muito mais atualizada. A internet, como já podemos enxergar, promete ser muito mais do que um espaço de compartilhamento de informação. A cada ano que se passa, nos aproximamos do dia em que a internet será, verdadeiramente, um novo espaço de vida, independente do mundo real. A partir do momento em que usamos lentes de contato que filmam cada segundo de nossos dias e imediatamente os armazena na rede, como acontece no filme da Apple TV, essa realidade paralela (ou metaverso, como está sendo marketada) se torna uma cópia mais e mais complexa do mundo em que vivemos. Resta saber se ainda estamos, sem perceber, debaixo de uma árvore em um pântano.

Um grande momento
Encontrando a barrinha de chocolate no bolso do casaco

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Marcus Benjamin Figueredo

Marcus Benjamin Figueredo é corintiano, cineasta e jornalista, filho da UnB. Também é pesquisador e já atuou como montador de clipes musicais, produtor, curador e membro do júri em festivais de cinema universitário e roteiro. Gosta de sinuca.
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